XXXV


É verdade que a partir daí passei a olhar para as árvores

como exemplos dos quais podia retirar uma lição,

ou uma inspiração. Plátanos, ciprestes, oliveiras,

pinheiros, aurocárias, choupos, cedros, eucaliptos...

Contemplei-os durante horas infinitas,

como coisas de Deus, coisas que talvez pudesse imitar.

Será que existe alguma forma de vida mais pacífica do que essa,

a da natureza que tão suave e imperceptível floresce?

Elas nem sequer perturbam coisa nenhuma,

quanto mais diminuem ou causam dano a algum ser vivo.

Erguem-se no ar enquanto o tronco e as raízes as sustentam

e são exactamente como um hino, uma acção de graças.

Expandem-se em ramos, folhas e frutos e fluem

silenciosas e discretas com as estações,

como se dançassem, e às vezes fazem flores

e dão frutos coloridos que são deliciosos e doces.

Nós os homens plantamo-las nas margens das ruas

para que nos façam companhia e as cidades

não se transformem em labirintos opressivos de betão,

por isso, pergunto, como pode um simples ser humano

ser assim tão generoso e tão bom?

XXXIV

 
Certa tarde li num livro sobre casos de pessoas

que conversavam com Deus, sem que ele falasse

com elas aos gritos, como às vezes acontece na Bíblia,

e sem que dele se pudesse sequer dizer que tinha uma voz,

mas essas pessoas faziam perguntas, pediam orientação

e ajuda, esperavam pela resposta e a sua resposta,

no momento oportuno, acabava por chegar.

Na altura considerei isto uma coisa interessante

e decidi experimentar, pensando: «Porque não?...»

E então o que fiz foi unir as mãos, com toda a seriedade,

fechar os olhos, baixar a cabeça e concentrar-me,

e como sempre perguntei: «Ouves-me, Deus?...»

Nunca tinha feito nada de parecido, mas disse:

«Deus, vou fazer-te uma pergunta

e vou esperar que me respondas. Vou tentar não pensar.

Vou ficar em silêncio e esperar.»

E enchi-me de coragem e perguntei:

«Diz-me, Deus, qual é o meu papel?...»

E deixei-me estar, sem pensar em nada,

completamente quieta, até que comecei a rir.

Era um riso que vinha do nada, como quem diz:

«Realmente, precisas de estar sempre a olhar para o chão,

para saber onde pões os pés?... Precisas de saber de antemão

como é o caminho todo, para começar a percorrê-lo?...

Ou precisas de um completo plano de acção para fazer

simplesmente o que está à tua frente para ser feito?...

Tu que precisas de reduzir os grandes números a percentagens,

para teres qualquer coisa de perceptível na imaginação,

já que um bilião de coisas deixa o teu sistema em curto circuito,

quanto mais o infinito, queres uma coisa tão grande como esta,

conhecer uma vida, quando da tua própria, grande parte já esqueceste?...»

Aliviada, percebi que a minha pergunta era absurda, e de novo perguntei:

«Como é que sei que estou a fazer o que está certo?...»

Porque não há listas de virtudes, nem manuais de boas maneiras,

nem aprovações ou elogios, nem códigos, nem legalidade que legitime

certas categorias de crimes, que apazigúem a minha cabeça

e o meu coração, relativamente às minhas dúvidas.

Talvez apenas Kant, mas faculta-me um difícil modelo,

uma lei muito difícil, quando levada até às últimas

consequências, e não uma inspiração.

Fiquei completamente em silêncio, à espera,

e esperei bastante tempo, imóvel,

sem que surgisse rigorosamente nada no meu pensamento.

«Não tens nada para me dizer?...» Foi o que pensei, por um segundo.

«Deus, como é que sei que estou a fazer o que está certo?...»

E então surgiu uma coisa no meu espírito, surpreendente,

totalmente surpreendente, completamente inesperada,

e essa coisa foi: «Olha para uma árvore e faz como ela faz.»

Nesse momento confesso que não pude evitar

sentir-me vagamente irritada,

porque aquilo era tão inesperado, e pensei:

«Olho para uma árvore e faço como ela faz?!...

Mas que raio de resposta!... O que é que uma árvore faz?...»

A nova resposta, porém, foi rápida como um tiro,

e deixou-me siderada, completamente parada,

como se tivesse sido atingida, porque já nem sequer estava

a perguntar, aquela pergunta já não era uma pergunta,

era uma reclamação, porque estava a começar a ficar zangada,

estava a ficar sem paciência, por causa deste meu feitio

indomável e caprichoso, e a resposta era,

a resposta simplesmente era:

«Floresce.»



XXXIII


De Deus não sei nada

a não ser as árvores

que se levantam desta terra

contra o fundo branco e azul

que os meus olhos fazem

do espaço celeste.
 

De Deus... de Deus afinal

não sei mesmo nada

a não ser esta vida

e na minha imaginação

as esferas gigantes

que no espaço imenso -

suspensas

e numa incrível suavidade

dançam, como se cantassem.
 

E é por isto que só posso

dirigir-me a ti com palavras

que me sejam acessíveis,

porque eu não «sei»

uma árvore, nem sequer

«sei» uma vida,

e é um discurso infantil,

este, com que te falo,

mas são as coisas que entendo.
 

É certo quando falo

do teu amor

que não sei precisamente

do que falo.


E mesmo quando falo

da tua compaixão

é certo que sei só

o que sinto na pele,

no coração, este,

por isso, olha

para estas palavras

como quem vê flores

espalhadas em campos,

olha para elas

como quem vê frutos

pendurados em ramos,

e não deixes de as ver

como coisas tuas.
 

São só imperfeitas

quando comparadas

com o sonho do que eu

desejaria alcançar,

são apenas imperfeitas

quando esgrimidas

pela minha cabeça.
 

Aceita-as, pois,

como se fossem apenas

uma parte dessa outra

sinfonia dos gestos,

os gestos mais simples,

os mais repetidos,

esses gestos

que compomos

ao longo do dia,

como quem compõe

uma acção de graças,

aceita-as apenas

como uma parte

dessa outra

coreografia,

Deus.

XXXII


Erguia-se mesmo em frente

do terraço principal,

debaixo desses canteiros

onde florescem as hortênsias,

uma fonte muito branca

toda feita de calcário,

colocada com graça

entre a gravilha da estrada,

diante da escada.

Esta fonte era composta

por duas taças sobrepostas:

a primeira, maior e mais larga,

assentava no chão

e era, no seu interior,

muito clara e cintilante,

ondulada como uma concha,

cheia de água transparente,

enquanto a segunda, mais pequena,

repousava, como uma pétala,

no topo de uma delicada coluna,

fazendo cair em cascata,

suave e musicalmente,

nova água sobre a primeira.

Brilhavam no fundo da água

pequenas moedinhas douradas,

por causa dessa história infantil,

mas sábia, que ensina

que existe mais esperança

na alegria de um breve desejo

precisamente nesse momento

em que se abre mão dele.
 


XXXI




Foi também num desses dias em que tentava praticar,
com boa vontade, é certo, mas com a maior inexperiência,
algumas destas virtudes que me eram totalmente estranhas,
e em particular esforçava-me, sem qualquer êxito,
por praticar um desligamento de certos afectos,
medos e preocupações que me intoxicavam,
(uma estranha espécie de amor, que me punha doente),
foi num desses dias que me apareceu no espírito,
subitamente e sem esforço, nem premeditação,
a imagem da mãe de Moisés colocando no Nilo
o seu bebé, dentro do cestinho betumado,
na esperança que alguém o recolhesse, mas entregando-se,
nesse gesto, à própria sorte, e lembro-me então de pensar
se haveria algum acto de fé que implicasse
maior coragem do que esse, o de colocar uma criança
totalmente indefesa, dessa maneira, nas mãos de Deus.
Na minha imaginação, porém, eu não via um rio,
mas sim uma infinita via láctea, luminosa,
muito branca e ondulada, sem princípio nem fim,
pois não via onde começasse, nem onde terminasse,
difusa e flutuante, e comecei por colocar aí uma pessoa,
uma certa pessoa que em particular me doía,
e via o seu fino corpo, magro e esguio, e enrolado,
partindo nessa via de luz, e então pensava:
«Estás a ver, Deus?... Está nas tuas mãos.»
Só que ao fim de algumas vezes em que o fiz, porém,
sobreveio um tal alívio, uma tal leveza, e uma tal liberdade
que o que então quis colocar nesse rio de luz foi
o meu próprio coração, que era o que mais me doía,
mas o que então via, com nitidez cortante e gritante,
era um coração muito encarnado, como numa dessas imagens
de anatomia renascentista, com suas veias e artérias cortadas
e separado do corpo, perfeitamente individualizado,
um coração vivo e real, verdadeiro, com um vermelho
que quase com violência se destacava dessa fluidez
muito branca que era a via láctea da minha imaginação,
e eu dizia: «Estás a ver, Deus?... É o meu coração.
Leva-o contigo, por favor. Segura-o nas tuas mãos.»
E entregava-lhe esse ritmo que batia, essa aspiração,
essa respiração e essa dor que doía,
e via-o a deslizar nesse rio de luz
que fluía e lentamente,
muito lentamente,
e surpreendentemente,
fiquei livre. 


XXX


A araucária, esta estranha árvore tão geométrica,

até poderia parecer um cone, se não quisesse observá-la

e decidisse passar por ela, distraidamente, como se não a visse.

O seu tronco muito direito lança-se no céu como uma linha,

quase irreal, e depois, nesse florescimento radial

em forma de estrela, divide-se e torna a dividir-se

em ramos e em sub-ramos, como um fractal.

Diante dela, parada, vejo porém como transgride,

nesse florescimento livre, o outro cone imaginário,

o da minha imaginação, porque os seu ramos crescem,

subtis e irregulares, com uma estranha fantasia alucinante

que ao mesmo tempo me atrai e confronta,

com uma curiosa forma de dor.

Sempre me fascinaram e ao mesmo tempo repeliram

esta espécie de árvores, sem que nunca percebesse porquê.

Sempre considerei que amava mais essoutra sensualidade

dos ciprestes, dos pinheiros, dos plátanos, das oliveiras,

dos eucaliptos. Mas dou por mim a pensar, a propósito

da forma como crescem os ramos da aurocária,

como ela é tão parecida afinal

com essa viva irregularidade das outras árvores

que não têm, como é evidente, copas

perfeitamente circulares, e dou por mim a pensar,

a propósito das linhas desse cone imaginário

que a árvore não cumpre, como também esta vida,

afinal, é mais surpreendente, mais empolgante,

mais cómica, mais trágica e mais divertida

do que qualquer coisa que pudesse alguma vez

ter imaginado, sozinha, eu mais a minha cabeça.

Estranha, nova e alegre consciência,

esta que faz da vida uma desconhecida

e fascinante aventura imprevisível,

porque afinal nunca saberei, da vida,

como dirá o seu excesso.


XXIX


Estando um dia de manhã

a tomar o pequeno-almoço

à beira de uma janela entreaberta,

entrou por ela uma abelha a zumbir

e por ali ficou, esbarrando e batendo contra o vidro,

atrapalhada. Estava eu a observá-la e a pensar

que não me apetecia enxotá-la

com um pano, no esforço de lhe indicar a saída,

pois lembrava-me das ocasiões anteriores

em que o tinha feito e que estes insectos

parecem sempre voar ao contrário

da direcção em que os enxotamos.

Além disso preocupava-me

pensar que acertasse, por acaso,

nas asas frágeis e transparentes

e que assim diminuísse, sem querer,

uma arte de voar, e pensava nisto,

enquanto observava a abelhinha

a palmilhar o vidro e a recuar,

quando encontrava o caixilho da janela,

e era precisamente depois dele que estava

a pequena fresta por onde podia escapar.

«Curioso.» Pensava eu. «Um pequeno ser vivo

tão habilidoso, que percorre o grande céu

sem se desorientar, poisa nas suas flores

por campos e campos, e regressa à sua casa,

sem se perder, está aqui encurralado,

na simples transparência de um vidro.»

Ao mesmo tempo deixava-me apreensiva

a ideia de que essa abelhinha

pudesse voar para dentro do boião do doce

mas não me apetecia entrar nessa luta

imprevisível de a enxotar, e dei por mim a pensar,

distraidamente, e quase inadvertidamente:

«É só uma criatura tua, Deus. Se tu quiseres,

ela encontra a saída num ápice.»

E nesse preciso momento, no momento exacto

em que se acabou dentro de mim este pensamento,

a abelhinha abandonou aquele movimento

obsessivo e insistente, contra o vidro,

fez uma elipse perfeita e saiu pela fresta,

com uma volta elegante.

«Caramba!...» Pensei eu.

«Não era preciso ser tão rápido!...»

E dei por mim com uma sensação estranha,

mas agradável, e muito leve,

pois de repente sentia como se Deus,

de repente, brincasse comigo,

e me estivesse a dizer: «Estás a ver,

criatura infantil, até que ponto existo?»

E é claro que Deus não conversava

nem me dizia nada, mas eu sentia nitidamente

que alguma coisa me estava a ser dita,

e nem sequer me passou pela cabeça

que este ínfimo acontecimento

se tratasse de uma coincidência,

e se eu pudesse falar com Deus,

nesse preciso momento, dirigindo-me a ele,

lançando-lhe um olhar pelo canto do olho, dir-lhe-ia:

«Divertes-te, hem?...» Porque é precisamente

isso o que sinto, mais do que penso,

quando observo certos animais, certas criaturas,

e certos aspectos particulares da natureza,

deste mundo em que a nossa vida acontece.

Uma zebra, por exemplo, ou os peixes

às riscas coloridas que andam pelo fundo do mar.

O excêntrico camaleão de olhos espetados,

com a ponta da fina cauda encaracolada, os cães,

quando levantam as orelhas, e certos bichos

que têm corpos surpreendidos e assarapantados.

A avestruz pestanuda e a altiva girafa,

de olhos meio trôpegos e sedutores,

o urso polar, o panda, o coala e o cangurú,

quem pode negar que há neles

qualquer coisa de cómico,

uma espécie de riso?...

Mas não só nos animais, mas nas plantas,

nas flores, nos legumes, nos fungos,

e até nas pedras, há uma espécie de divertimento,

uma maneira peculiar de brincar.

Imagine-se uma alcachofra, um ananás,

a flor do hibisco, ou certas espécies de cogumelos,

com as suas bolinhas brancas, contra um fundo vermelho.

E eu pensava, sem poder impedir-me: «É verdade, Deus,

é bem verdade que às vezes ainda sou essa criança

que não sabe como crescer, não sabe como envelhecer,

não sabe às vezes como viver e muito menos como morrer.

Ris-te de mim, não é?... 

Ris-te com essa espécie particular de carinho

porque sabes que me bato contra limites

mas o que é certo é que uma parte

do que ainda tenho de aprender

será conseguir levar-me tão a sério

e precisamente nessa medida

em que a vida a si mesma se leva.»
 


XXVIII


Foi também quando era criança,

e bem pequena, com cerca de nove anos,

que me zanguei com Deus, e deixei de lhe falar.

Não sei se posso dizer, com toda a precisão

e justiça, exactamente como foi, mas lembro-me

que nessa altura passavam na televisão

as imagens da fome na Etiópia e sempre apareciam,

desoladas e imóveis, aquelas pobres crianças

que nem sequer choravam e tinham nos rostos

os olhos opacos e inexpressivos, e cobertos de moscas,

e as grandes barrigas, enormes nos seus pequenos

corpos nus, mal apoiadas nas finas pernas,

com os ossos dos joelhos salientes, muito visíveis.

«Mãe, porque é que têm estas barrigas tão grandes?...»

«Têm muita fome.» - Foi a resposta.

Parecia um contra-senso, e lembro-me

de sentir na pele uma espécie particular de absurdo,

porque a mim sobrava-me a comida

e eu, mimada, fazia birras para comer

e recusava-me, quando não gostava

daquela comida que às vezes me davam.

«Não podemos enviar-lhes a comida que nos sobra?...»

«Estraga-se pelo caminho, porque

demora muito tempo a chegar.»

«E porque é que estes meninos

não enxotam as moscas da cara?...»

«Já não têm forças.» - Foi a resposta.

Mas eu continuei a pensar, sozinha e calada,

no homem ou na mulher que seguravam

a câmara de filmar, e tinham forças para o fazer

mas não as tinham, no que dizia respeito

a enxotar as moscas do rosto e dos olhos

daquelas pequenas crianças, ali paradas,

e nesse momento, nesse preciso momento,

qualquer coisa em mim se quebrou

de uma forma absolutamente radical,

essa antiga confiança, essa alegria

de ser certo, no meu coração,

que havia um Deus de amor

especialmente para nós, crianças,

e ainda hoje penso como é possível

neste mundo imaginar-se que é possível

maltratar uma criança numa ponta

sem que morra uma criança na outra.

XXVII


Quando era ainda bem pequena

e tinha três ou quatro anos, a minha mãe,

no tempo frio, tinha o hábito de me envolver numa manta,

antes de me deitar na cama, e ela enrolava

essa manta bem apertada em torno do meu corpo,

como se eu fosse um daqueles bebés russos

enfaixados e metidos dentro de um cestinho,

tão bem enrolados, que nem se podiam mexer.

Depois ajoelhava-se aos pés da minha cama

e envolvia as minhas pequenas mãos, unidas,

dentro das suas, e rezava comigo: «Pai nosso,

que estais no céu...» «Avé Maria, cheia de graça...»

E por fim, a única oração

que meu espírito de criança percebia:

«Anjinho da Guarda, minha doce companhia,

guardai-me de noite e de dia.»

E lembro-me bem de adormecer tão alegre

naquele mimo, e de me imaginar aninhada

dentro das asas fofas desse anjinho,

tal como o filhote cangurú

na bolsa da mãe cangurú,

e talvez por isso, ainda criança,

mas mais crescida, mesmo sozinha,

sempre rezava, antes de me deitar,

essas três orações, mesmo as duas primeiras

sendo como canções em língua estrangeira,

qualquer coisa que imitava,

sem compreender, e no fim terminava

com uma coisa da minha invenção,

que era mandar beijinhos

para as pessoas que não estavam comigo,

como se deus fosse, na minha imaginação infantil,

alguma espécie de correio, e nas férias,

beijinhos à mãe, ao pai, ao avô, à avó,

e no que pensava, para adormecer,

era nessas pequenas coisas

que me tinham dado especial alegria,

um banho de mar, um lanche de crepes,

uma brincadeira com amigos que fosse

particularmente divertida e inspirada...

porque era tão pequena, nessa altura,

e tão alegre, e hoje gostava, mas não sei como

abraçar de novo essa criança tão simples

e que nas suas orações não se lembrava

sequer de um único pedido, mas apenas de amar,

e à sua maneira muito própria,

de agradecer.

XXVI


Certa noite, vinha de carro, a guiar,

e parei num sinal vermelho.

De um lado estava o mar

com os navios de carga iluminados

como diademas de brilhantes

à entrada do rio, parados

naquela escuridão transparente,

que sempre me fascina e desafia,

e do outro lado havia uma rua

iluminada por postes de luz branca,

levemente inclinada e que subia,

ladeada de pequenas casas,

e no início dessa rua,

uma bomba de gasolina

já um pouco decadente

no meio do alcatrão e do cimento

e com um velho néon de cores

transparentes e ácidas.

Era para esse lado que olhava,

para a bomba de gasolina

e para as linhas dançantes

que compunham as luzes brancas

e ácidas dos paralelepípedos

que eram os néons, e para as letras

que compunham as palavras

e que estavam iluminadas,

meros logotipos e anúncios

que não tinham nada de especial,

pelo contrário, poderia até

dizer-se que eram feios,

de um certo ponto de vista,

mas de repente fui ali atingida

por uma emoção peculiar

e tão forte que o que queria

era ficar para sempre ali parada

e que o sinal vermelho

já não mudasse para verde.

«Deus, afinal,

não me leves tão depressa,

porque não quero despedir-me ainda,

nem daqui, nem deste mundo.»

Pois era como se aquela emoção

tivesse feito de mim um cristal,

e queria ficar sempre ali,

imóvel, parada,

naquele colorido que vibrava

e dançava e parecia que cantava,

essa espécie peculiar de alegria,

transparente e vibrante,

mas estava deveras intrigada,

intrigada porque já tinha

ali passado muitas vezes,

sem nunca sentir nada

de semelhante diante

desse quadro imperceptível.

«De certeza não serei

apenas eu, cruzada neste ângulo,

com este bocado de mundo...

Não sou só eu, minúscula,

a ver no carro parada

uma perspectiva insignificante.»

E tudo o que me ocorria pensar,

como se  tocasse na margem

de algo mais, tocando

com a ponta dos dedos,

mas sem poder ir mais além,

da mesma forma que alguém,

no limite do corpo se esticando,

pratica um movimento de torção

e quer, mas não consegue,

dobrar-se ainda mais, tudo

o que me ocorria pensar era:

«Será que és tu, Deus,

quem espreita agora,

agora mesmo,

pelos meus olhos e sente

com o meu coração?...»

XXV


Sobre o corpo humano e o seu destino,

há quem pense que é insensata a questão sobre com que corpo

é que iremos atravessar a nossa morte, se com este,

que temos agora, se com aquele que tivemos em crianças,

se com o outro que teremos em velhos, um dia,

se com o corpo moribundo, se com o corpo enterrado,

se com o corpo corrompido por essas fraquezas e doenças

a que tenhamos sucumbido, em vida, ou esse corpo virtual,

o corpo que nunca chegamos a ter, neste mundo, mas que teremos,

eventualmente, através dos intervalos que unem este mundo a outros mundos

e que nem sequer vislumbramos, aí sim,

o corpo sem nenhuma mutilação, porventura esse outro corpo,

o glorioso, esse que possa ser o corpo

de uma pura e viva, completa e absoluta actividade criativa.

Há quem pense que o próprio corpo desta vida

tal como a vivemos neste mundo é como a semente

de outra coisa que está por vir, igual a esses grãos

de plantas vivas, que se desfazem e desaparecem,

nesta terra, cada um deles, para dar lugar

ao seu particular florescimento, sejam grãos de trigo

ou sementes de outra espécie, e que assim

também estes corpos é necessário que sejam enterrados

na terra, como grãos, para que então possam florescer,

depois da morte, para a vida eterna. «Nem todos morreremos.»

É o que dizem. «Mas todos havemos de ser transformados.»

E eu pergunto: esta íntima aspiração da vida fluente

sem ser interrompida, quem, com absoluta sinceridade,

poderá afirmar que alguma vez não a tenha tido,

e esta visão do seu corpo como um abismo,

como uma espiral de corrupção e redenção, quem,

que alguma vez tenha começado a pensar, não a pensou?

Também para mim esta habitação na terra

se assemelha a uma dessas tendas do deserto,

uma dessas amplas e sumptuosas tendas de príncipes

persas do século XII, forradas de veludos e tapetes,

tingidas de púrpura e bordadas de seda, esta habitação

assemelha-se a essa tenda que se vai desfiando e cujas paredes

ondulam e tremem com o vento, à sombra

de uma duna no deserto, ou à beira de um oásis.

E nem sequer posso negar que já tenha tocado

essa íntima aspiração de querer estar dentro

de uma outra casa, de um outro corpo, mais distante,

ou mais próximo, e em que não me sentisse «assim tão despida»,

e mesmo sendo capaz de amar esta pele, com a sua peculiar maciez,

e deslize igualmente nela, como deslizo numa paisagem,

também não posso negar que conheço bem

esse sonho de suspirar por um outro lugar em que tudo

o que é mais mortal e corruptível, como a carne,

não deixe de ser eternamente absorvido pela vida, nem de fluir.

Porque às vezes nesta vida este corpo também se liberta,

com uma espécie de abrupto choque ou violência,

e é como se os panos dessa tenda, sob os golpes

irregulares mas implacáveis de uma inesperada intempérie,

se soltassem dos seus nós, e ondulassem e batessem,

suspensos das estacas, em sintonia com as ondas da areia

e com as linhas da paisagem, e em comunhão com elas,

em sintonia com o ar e com o vento, com as nuvens que deslizam,

com as águas que correm e com a luz que se extingue,

em sintonia até com o excesso da própria tempestade

e, neste caso, violência e suavidade deixam de diferir, sequer,

porque neste movimento é como se pele e atmosfera

formassem, já não uma oposição, mas sim um plano.

Sinto-me então como se fosse a própria onda que atravessa

esse tecido e faz dele um mar, qualquer coisa

tão perfeitamente livre e fluída que até o suave limite

dessa bainha terminal passa por ser uma dor que me trava e cancela,

como um obstáculo que se sofre e que já projecta, violento,

uma outra onda de choque, uma outra dor que me diz:

«Quando te libertarás, enfim, das tuas estacas, ó tenda suave?...

Quando é que por fim te desfiarás todo, macio veludo,

e te desfarás em pó, invisível, entre os grãos de areia?...

E quando chegará enfim esse momento em que te desprenderás, 

liberta finalmente, finalmente livre, destes próprios ossos,

que são como estacas, finas e nuas, plantadas no deserto?...»


XXIV


Em certos momentos, confesso -

por dentro é como uma fábrica

em que as máquinas aterradoras

se movem com vida própria

e são demasiado grandes e perigosas,

na sua força e complexidade,

para a dimensão que realmente tenho,

neste mundo.

 

Por vezes até parece

que sou apenas, suave,

essa alegre e simples borboleta

que por acaso aí tenha entrado,

esvoaçando entre a percussão e o triturar

desse hipnótico e espantoso

movimento rítmico - e por aí dançando,

em leve e peculiar sintonia

com toda essa infernal maquinaria,

se eleva e suspende com o trinado

do seu errático movimento.

 

Noutros momentos, porém, quase negros

e de uma voragem terrível, é verdade

que sinto ser a própria carne

que é esmagada pelo avanço imparável

dessa intensidade incompreensível -

e é como se no interior desse edifício

se deslocasse um buraco negro,

uma vertigem, ou um vórtice

que fosse a própria aresta do caos.

 

Nestes momentos, confesso

que ainda sinto, súbita,

aquela antiga necessidade de morrer,

e também me questiono, pois,

se até um instrumento musical,

como um piano, protejo da luz do sol

e das diferenças de temperatura,

para que a madeira não estale

e a afinação da cordas não se ressinta,

como conseguirei, afinal, tão frágil

e tão vulnerável, aparentemente,

pelo menos, feita de nervos, de pele,

de ossos, de carne e de sangue,

como conseguirei afinal resistir ou suportar

o excesso desta espécie de violência,

ou então encontrar essa elasticidade,

essa peculiar flexibilidade para me deslocar

entre estes limites, e mesmo assim

permanecer inteira?...

 

A única coisa

que se afigura como certa

é que não poderá ser esta matéria,

esta, precisamente a que tenho,

mas por força maior terei de encontrar

a maneira de me fazer de outra coisa,

de uma outra consistência, ou maleabilidade,

na qual este movimento, ou espécie de violência,

ao invés de destruir, possa fluir.

XXIII


Porque há uma coisa em mim

que sabe exactamente

o que é ser pássaro

e voar, e voa com ele

quando o vê, tão livre

e tão leve, no azul brilhante

do céu que os dois envolve.

Ele flui com as asas abertas

em linhas invisíveis

de tensão e suspensão

e qualquer coisa em mim

sabe exactamente,

sem saber como,

o que é ganhar balanço

nesse rápido bater de asas,

nesse vivo impulso,

e depois deixar-se fluir

numa linha contínua,

que é por si própria,

na sua leveza absoluta,

uma espécie de infinito,

talvez uma inclassificável

participação de outra esfera,

como qualquer coisa

que está à beira de outra,

uma praia, ou uma franja,

voando no vento,

e a verdade, a verdade

é que essa coisa em mim

sabe perfeitamente e sem

qualquer espécie de dúvida

a precisa e peculiar diferença

que existe entre a intensidade

do batimento rítmico

com que o pássaro

se eleva nos ares,

em súbito esforço,

e essa tensão suave,

esse contínuo sensual

e diria: realmente infinito -

que é estar suspensa

numa linha de absoluta fluição.

Em sonhos verdadeiros,

enquanto durmo, no meu sono

também já aconteceu

que as pontas dos meus pés

se separassem

do chão e eu também

voei e sei o que isso é,

sem saber como

nem porquê.

XXII


Que bom seria se pudesse dizer, da minha alma,

que a sua conduta fosse irrepreensível,

como se agora mesmo ela nascera,

e livre pudesse então partir, imaculada,

nesse luminoso cortejo dos bem aventurados,

que em redor das estrelas, como descreve Platão,

viajam felizes para o topo do céu,

essa cristalina morada onde se diz que as cores

são mais brilhantes e variadas, mas confesso:

não consigo sequer pensar

que seja verdade que nós humanos

estejamos para esse mundo impensável

como os peixes quando põem a cabeça fora de água,

e olham para a terra maravilhosa que nós pisamos,

lamentando esse mar cheio de sal e saibro

que é o abismo de toda a escuridão.

E mesmo que voltasse a esta vida

carregada com um novo e inesperado

quinhão de dor, mesmo assim desejaria,

ainda assim, fazer parte deste esplendor,

porque ser uma pessoa, abrir os olhos e ver

tantas maravilhas e luminosas, irisadas cores,

o céu muito azul e uniforme, ao mesmo tempo liso e fundo,

como um ecrã rasgado no infinito,

e o verde puro e transparente

que explode em todo o lado, brilhante e variado,

porque ser uma pessoa, ter corpo e concentração,

poder sentir e pensar, e ter dois olhos

que captam a luz, ouvidos, boca, mãos e coração,

e girar em volta e ver, erguida sobre os pés,

disso também se pode dizer, é verdade,

que seja a bem-aventurança.

E por isso quereria sempre chegar aqui

e participar, fazer qualquer coisa, nem sei bem o quê,

talvez cultivar um jardim, talvez erguer uma casa,

tocar ou dançar, sem ninguém a olhar,

debaixo de uma árvore, não sei,

pois teria de me inspirar, e de me abandonar,

pôr-me no meu caminho e deixar-me fluir

para conseguir essa proeza

de poder realizar qualquer coisa de bom

e assim conseguir ficar

em harmonia com o resto.