Dedicatória


 
 
Estes poemas foram dedicados à  Andreia Marques

que morreu quando ainda parecia uma menina.




Minha querida amiga,

tão leve e delicada,

tão graciosa e tão gentil

e em cuja companhia,

e com tão fino humor,

me divertia tanto,

quero agradecer-te

por te teres despedido de mim

e por me teres chamado

um dia antes de morreres.

Obrigada

 por te ter visto tão tranquila,

estendida no teu sofá,

diante do jardim

habitado por árvores

e por passarinhos.

E lembro-me que  tu disseste:

«Não acredito em nada,

mas já estou tranquila.

Os passarinhos

também vêm

e depois partem

e estão tranquilos.»

E lembro-me que te pedi:

«Posso abraçar-te?»

Obrigada hoje

por esse abraço.

Pois ainda

quero acreditar

que mesmo tendo tu

partido tão cedo desta terra,

ainda assim,

talvez um dia,

voltemos a encontrar-nos,

noutra esfera.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

XLII


É por tudo isto verdade

que estes limites não permitem

que te possa pedir muito,

mas apenas que venhas

como um amável carpinteiro

e com esse estranho amor

que aplaines esta madeira,

esta tábua caprichosa

que parece ser o meu espírito

até que ela fique tão lisa

que então te possas inscrever.

Dá-me força para viver esta vida,

esta vida e não outra, tal como é,

vida incompreensível, vida desconcertante,

vida por vezes tão difícil

que mais parece

uma série bem organizada de provas,

como num curso cuja finalidade

claramente não alcançamos

e que um dia esta imagem seja verdade,

esta imagem, porque as minhas palavras

não alcançam mais:

que um dia eu atravesse a minha morte

como se fosse possível seguir

por essa desconhecida via luminosa

sempre sempre sempre

de mãos dadas contigo,

Deus presente e desconhecido,

mais fino ainda que o ar,

mais imperceptível que os átomos,

tão extenso como os cosmos infinitos

e como a matéria de todos os corpos:

ó Deus do meu desejo eterno

e que é apenas eterno

porque está fora do tempo,

não tem princípio nem fim,

este desejo, não começou nem acabou

mas tu sabes que está num outro plano,
 
como a infância.
 


XLI


Do teu amor tenho um vislumbre

quando vejo a luminosa paisagem,

esta paisagem transparente,

suavemente colorida e musical,

com suas árvores radiantes

e o verde translúcido que canta,

de tão intenso que aparece,

e nela a vida vegetal, com essa força

que a faz erguer-se nos ares, explodindo

em pura luz, e a vida mineral,

cantando, com seus bocados de pedra

e partes de montanhas e colinas

e lotes de campos contrapostos

como blocos musicais, afirmação

vibrante e tão presente, apresentada,

de uma particular sinfonia, e ainda

essa construtiva e afadigada vida humana

que nas casinhas, na rede eléctrica,

nos sinais de trânsito e nas linhas fluentes

das estradas, se organiza e persevera,

e quando vejo esta paisagem, eu,

que em tempos supliquei que me apagasses

e nesta cor me dissolvesses, ou dissipasses,

do teu amor, quando vejo esta paisagem,

do teu amor agora tenho uma espécie

de vislumbre e sei que é verdade

que entre os infinitos seres que aparecem

também eu participo deste estranho equilíbrio,

também eu sou pedrinha no infinito mosaico,

porque nem sequer a mim própria inteiramente

me pertenço, e agora sei, finalmente sei

que é nesta espécie de amor que aconteço

e também que é neste estranho amor

que permaneço, tal como essa flor

que intacta permanece, entre o seu aparecimento

e o seu desaparecimento, no meio do turbilhão

e da turbulência que o próprio universo

tem e parece que move, e assim,

diante da paisagem, com os olhos a arder

e o coração a doer, desta emoção,

parece que é uma espécie de arrependimento

esta gratidão que sinto por ter,

sem explicação, este vislumbre,

e por estar, diante desta transparência,

por assim dizer, de olhos lavados,

e eu própria, de repente, despojada,

como se tivesse nascido

uma segunda vez e esta afinal

é que fosse a primeira vez. 

XL


Quem me dera, pois,

que sobre o meu coração,

desça tranquilamente

a tua coroa de paz,

e sempre que sinta medo,

que tu me enchas de coragem,

sempre que me sinta só,

que me dês a confiança,

sempre que me sinta fraca,

que me tragas a força,

e se alguma vez quiser negar a minha vida,

se isso um dia se repetir,

que me lembres este amor

em que certo tempo aconteci

e aquele em que hoje aconteço.

Porque parece estar condenado

aquele que te vira as costas,

confiando num simples homem,

e apenas na força humana.

Julgando-se grande,

é apenas um arbusto

plantado no deserto,

nessa terra seca e árida

onde ninguém pode habitar.

Porém quem se deixa guiar

é como uma árvore

que cresce à beira de um rio

e cujas folhas não murcham.

Dá o seu fruto na estação própria

e tudo o que produz é bom.

Nem no Verão

deixa de florescer

e mesmo sem chuva

não deixa de dar fruto.

XXXIX


Deus cuja bondade não consigo compreender,

porque os meus olhos nunca vêem a totalidade das coisas,

nem a vida depois da morte, nem a consolação do mártir,

e muito menos o tempo inteiro que ao drama restitui o seu sentido;

Deus cuja justiça não consigo julgar,

porque o sofrimento desta vida no mundo, não posso compreendê-lo,

e porque o meu julgamento, passo uma vida a revê-lo,

pois trata-se de uma coisa imperfeita;

Deus para quem uma certa inteligência

não passa de um estreito corredor,

para ti que não tens limites, criação, vida infinita infindável,

vida indizível, vida incontida, vida imprevista,

vida excessiva e no seu limite impensável,

enquanto eu nem sequer entendo

como é que a mais pequena das ervas

nasce e morre;

Deus, não me abandones,

mas mostra-te comigo em ti e não deixes de saber

quantos cabelos estão na minha cabeça.

Eu que fui tanto tempo a figueira sem fruto,

porque olhava e não via, tinha cabeça e não pensava,

ouvia sem compreender e o meu coração é que chorava,

Deus, não me abandones, mas protege-me

- para sempre - com o teu poder infinito.

XXXVIII


Um dia de manhã ao sair do carro

carregada de compras, parada de pé

sob a luz suave que se coava dos plátanos,

nessa transparência verde diáfano

que vibrava, intensa e alegre,

como um foco, senti de súbito

esta espécie de presença

que atravessa as coisas -

sem que se distinga delas,

esta força delicada e amorosa

que parece suster intactas

as várias vidas: gente, relva,

árvores, flores, casas, carros... 

e de repente... já não tinha nada para fazer.

Tirar a mala do carro, as compras...

Olhava para as copas luminosas e vibrantes

das múltiplas folhas transparentes

e pensava apenas,

com uma clareza que me abalava:

«Existo exactamente para ver-te

tal como te vejo, plátano.

Danças e vibras e falas-me,

como se fosses alguém

muito familiar e muito antigo,

e parece que me tocas,

sem que me abraces,

pelo contrário, plátano,

ambos nos expandimos,

como se irradiássemos,

e é possível, de facto é possível

que irradiemos realmente

alguma espécie de luz conjunta,

estando assim um entre o outro,

neste bocado de mundo.»

De súbito, sinto

com uma clareza absoluta

que existo para ver estas coisas

tal como as vejo: exactamente.

E é assim mesmo.

Existo para que o resto das coisas

me aconteçam assim no olhar,

tal como aparecem, com esta definição exacta...

esta precisão notável e visível.

Como se houvesse uma medalha

(que não pode andar solta),

e nós fôssemos o fio

(esse fio que a liga).

XXXVII


Houve quem perguntasse porquê, tendo sido nós

dotados desta aspiração a uma coisa maior,

desta fome de Deus, deste querer saber mais

do que a razão permite, tendo sido nós

ocupados por esta indagação do sentido

do que possa ser realmente bom, nas nossas vidas,

então porque é que a natureza nos privou

dessa inteira lucidez que seria a visão

de todos esses mundos, e da justiça e da bondade

deste deus a que o coração aspira, mas não alcança.

O mesmo homem tão verdadeiro, tão lúcido,

tão determinado e compassivo, que tal pergunta

enunciou, teve também a coragem de propor uma resposta,

perguntando, então, se continuássemos a ser humanos,

e com uma tal sabedoria, tal, que nem podemos

sequer imaginá-la, então, o que seríamos?

Seríamos de tal forma absolutamente obedientes,

desde o início das nossas vidas, mas não por esperança,

não por dever, não por experiência, não por rendição,

não por amor ao Deus da nossa mais íntima inspiração,

contudo, desconhecido, e aí então seríamos como fantoches,

meros mecanismos de um teatro em que todos nós

gesticularíamos tão perfeitamente bem, mas sem

que vida alguma, nessas perfeitas figuras,

fosse possível vislumbrar. Onde estaria então

esse outro dom, este intocável do inesperado

com que somos lançados neste mundo?...

Por tudo isto, e porque também não é provável que possa

realmente apertar-lhe as mãos nesse mundo dos mortos,

quero deixar aqui estas palavras, aqui,

neste mundo de vivos, como que gravadas

em lápide, porque enquanto as conservar, vivas,

dentro de mim e do meu coração, sei que é

absolutamente impossível que alguma vez volte

a sentir-me assim tão só, tal foi a companhia e a alegria

que senti, quando li que «deste modo, portanto,

também poderá ser exacto o que nos ensina

suficientemente o estudo da natureza e do homem,

isto é: que a sabedoria impenetrável,

por meio da qual existimos, não é menos digna

de veneração por aquilo que nos negou,

do que por aquilo que nos concedeu.»

XXXVI


Havia ainda, nessa grande casa

em que vivíamos, eu e Maria do Mar,

uma outra sala, geminada com a primeira,

em frente do terraço, com essas altas portas

envidraçadas que se abriam sobre os campos.

Chamávamos-lhe «Sala dos Nenúfares»,

por causa dessa curiosa pintura circular

que um certo bisavô, porventura excêntrico,

decidira fazer ao longo das paredes,

ocupando-as na totalidade, de tal forma

que os únicos móveis ali expostos,

no centro da sala, deixando livre tudo em volta,

eram dois velhos sofás e uns cadeirões de pele,

já muito gastos e estragados, e inclinados,

e uma cadeira de baloiço, em palhinha, sobre um tapete,

e nada mais, porque a intensidade dessa pintura

enchia todo o espaço de uma excessiva presença.

Tínhamos o hábito de ler, aí, nessa sala,

rodeadas por esse verde meio opaco

que era o das águas paradas de um lago,

aqui e ali, coberto de nenúfares,

essas flores aquáticas que com suave brancura

delicadamente iluminavam a penumbra,

e era tão bom e tão suave esse contraste entre o verde

das águas e o verde das folhas dos nenúfares

quase em forma de coração, sobre elas poisadas,

e era tão bom esse outro rosa das pequenas flores

que caíam, em cascata, das trepadeiras que se erguiam,

ao longo das paredes, enquanto líamos as duas,

em silêncio, confortavelmente estendidas nos sofás.

Do terraço vinha essa suave luminosidade

que nos libertava, e ao longe, sobre as amuradas,

podíamos ver essas brancas figuras humanas

que alguém esculpira em calcário,

agora incompletas, arruinadas pelos anos

que sucessivamente tinham passado,

sem que houvesse um trabalho de restauro.

Numa faltava uma cabeça, noutra um braço,

noutra ainda uma mão, ou um pé,

mas a delicadeza dos suaves drapejados,

modelando os corpos, não se tinha perdido,

nem se perdera essa silenciosa majestade,

essa comovente dignidade da vida que se ergue,

tão frágil, e tão desafiante, no meio do movimento

da matéria que parece um turbilhão, e nessa altura,

enquanto líamos, essas figuras humanas sobre os muros

do que nos falavam era precisamente desta

estranha e curiosa dupla condição

que é uma linha de tensão que persiste

entre erguer-se e estar arruinado.