Foi também num desses dias em que tentava praticar,
Foi também num desses dias em que tentava praticar,
com boa vontade, é certo, mas com a
maior inexperiência,
algumas destas virtudes que me eram
totalmente estranhas,
e em particular esforçava-me, sem
qualquer êxito,
por praticar um desligamento de
certos afectos,
medos e preocupações que me
intoxicavam,
(uma estranha espécie de amor, que
me punha doente),
foi num desses dias que me apareceu
no espírito,
subitamente e sem esforço, nem
premeditação,
a imagem da mãe de Moisés colocando
no Nilo
o seu bebé, dentro do cestinho
betumado,
na esperança que alguém o
recolhesse, mas entregando-se,
nesse gesto, à própria sorte, e
lembro-me então de pensar
se haveria algum acto de fé que
implicasse
maior coragem do que esse, o de
colocar uma criança
totalmente indefesa, dessa maneira,
nas mãos de Deus.
Na minha imaginação, porém, eu não
via um rio,
mas sim uma infinita via láctea,
luminosa,
muito branca e ondulada, sem
princípio nem fim,
pois não via onde começasse, nem
onde terminasse,
difusa e flutuante, e comecei por
colocar aí uma pessoa,
uma certa pessoa que em particular
me doía,
e via o seu fino corpo, magro e
esguio, e enrolado,
partindo nessa via de luz, e então
pensava:
«Estás a ver, Deus?... Está nas
tuas mãos.»
Só que ao fim de algumas vezes em
que o fiz, porém,
sobreveio um tal alívio, uma tal
leveza, e uma tal liberdade
que o que então quis colocar nesse
rio de luz foi
o meu próprio coração, que era o
que mais me doía,
mas o que então via, com nitidez
cortante e gritante,
era um coração muito encarnado,
como numa dessas imagens
de anatomia renascentista, com suas
veias e artérias cortadas
e separado do corpo, perfeitamente
individualizado,
um coração vivo e real, verdadeiro,
com um vermelho
que quase com violência se
destacava dessa fluidez
muito branca que era a via láctea da
minha imaginação,
e eu dizia: «Estás a ver, Deus?...
É o meu coração.
Leva-o contigo, por favor. Segura-o
nas tuas mãos.»
E entregava-lhe esse ritmo que
batia, essa aspiração,
essa respiração e essa dor que
doía,
e via-o a deslizar nesse rio de luz
que fluía e lentamente,
muito lentamente,
e surpreendentemente,
fiquei livre.