XXXI




Foi também num desses dias em que tentava praticar,
com boa vontade, é certo, mas com a maior inexperiência,
algumas destas virtudes que me eram totalmente estranhas,
e em particular esforçava-me, sem qualquer êxito,
por praticar um desligamento de certos afectos,
medos e preocupações que me intoxicavam,
(uma estranha espécie de amor, que me punha doente),
foi num desses dias que me apareceu no espírito,
subitamente e sem esforço, nem premeditação,
a imagem da mãe de Moisés colocando no Nilo
o seu bebé, dentro do cestinho betumado,
na esperança que alguém o recolhesse, mas entregando-se,
nesse gesto, à própria sorte, e lembro-me então de pensar
se haveria algum acto de fé que implicasse
maior coragem do que esse, o de colocar uma criança
totalmente indefesa, dessa maneira, nas mãos de Deus.
Na minha imaginação, porém, eu não via um rio,
mas sim uma infinita via láctea, luminosa,
muito branca e ondulada, sem princípio nem fim,
pois não via onde começasse, nem onde terminasse,
difusa e flutuante, e comecei por colocar aí uma pessoa,
uma certa pessoa que em particular me doía,
e via o seu fino corpo, magro e esguio, e enrolado,
partindo nessa via de luz, e então pensava:
«Estás a ver, Deus?... Está nas tuas mãos.»
Só que ao fim de algumas vezes em que o fiz, porém,
sobreveio um tal alívio, uma tal leveza, e uma tal liberdade
que o que então quis colocar nesse rio de luz foi
o meu próprio coração, que era o que mais me doía,
mas o que então via, com nitidez cortante e gritante,
era um coração muito encarnado, como numa dessas imagens
de anatomia renascentista, com suas veias e artérias cortadas
e separado do corpo, perfeitamente individualizado,
um coração vivo e real, verdadeiro, com um vermelho
que quase com violência se destacava dessa fluidez
muito branca que era a via láctea da minha imaginação,
e eu dizia: «Estás a ver, Deus?... É o meu coração.
Leva-o contigo, por favor. Segura-o nas tuas mãos.»
E entregava-lhe esse ritmo que batia, essa aspiração,
essa respiração e essa dor que doía,
e via-o a deslizar nesse rio de luz
que fluía e lentamente,
muito lentamente,
e surpreendentemente,
fiquei livre.