XXVI


Certa noite, vinha de carro, a guiar,

e parei num sinal vermelho.

De um lado estava o mar

com os navios de carga iluminados

como diademas de brilhantes

à entrada do rio, parados

naquela escuridão transparente,

que sempre me fascina e desafia,

e do outro lado havia uma rua

iluminada por postes de luz branca,

levemente inclinada e que subia,

ladeada de pequenas casas,

e no início dessa rua,

uma bomba de gasolina

já um pouco decadente

no meio do alcatrão e do cimento

e com um velho néon de cores

transparentes e ácidas.

Era para esse lado que olhava,

para a bomba de gasolina

e para as linhas dançantes

que compunham as luzes brancas

e ácidas dos paralelepípedos

que eram os néons, e para as letras

que compunham as palavras

e que estavam iluminadas,

meros logotipos e anúncios

que não tinham nada de especial,

pelo contrário, poderia até

dizer-se que eram feios,

de um certo ponto de vista,

mas de repente fui ali atingida

por uma emoção peculiar

e tão forte que o que queria

era ficar para sempre ali parada

e que o sinal vermelho

já não mudasse para verde.

«Deus, afinal,

não me leves tão depressa,

porque não quero despedir-me ainda,

nem daqui, nem deste mundo.»

Pois era como se aquela emoção

tivesse feito de mim um cristal,

e queria ficar sempre ali,

imóvel, parada,

naquele colorido que vibrava

e dançava e parecia que cantava,

essa espécie peculiar de alegria,

transparente e vibrante,

mas estava deveras intrigada,

intrigada porque já tinha

ali passado muitas vezes,

sem nunca sentir nada

de semelhante diante

desse quadro imperceptível.

«De certeza não serei

apenas eu, cruzada neste ângulo,

com este bocado de mundo...

Não sou só eu, minúscula,

a ver no carro parada

uma perspectiva insignificante.»

E tudo o que me ocorria pensar,

como se  tocasse na margem

de algo mais, tocando

com a ponta dos dedos,

mas sem poder ir mais além,

da mesma forma que alguém,

no limite do corpo se esticando,

pratica um movimento de torção

e quer, mas não consegue,

dobrar-se ainda mais, tudo

o que me ocorria pensar era:

«Será que és tu, Deus,

quem espreita agora,

agora mesmo,

pelos meus olhos e sente

com o meu coração?...»