XVII


E nessa altura, também pensava:

«Se a minha fé fosse a de um santo, jamais seria infeliz.

Aceitaria tudo como sendo bom, um passo antes de outro passo,

degrau antes de degrau, passagem absolutamente necessária.

Aceitaria a totalidade invisível do mundo e da vida

como a perfeição de uma visão última que não a minha,

o destino justificado de um sentido para mim inalcançável,

e então aceitaria a própria dor como a natureza incontornável de um limite,

o limite humano de um parco poder de observação,

de uma demasiado estreita compreensão, Deus.»

E pensava: «Quando é que terei essa resignação, essa serenidade?...

Não é verdade que também Cristo gritou na cruz, no meio do sofrimento:

“Pai!... Porque me abandonaste?...”

Se a minha fé fosse sempre a que tivesse

quando tenho a emoção de ver um malmequer

e penso que tu, meu deus, é que o formaste,

um malmequer ou um bebé ou qualquer coisa viva

que, de tão bela, o coração não a suporta,

mas desfaz-se, apaixonado, na emoção de a amar,

então não seria nunca infeliz.

Mas Pedro também se afundava nas águas,

diante de Cristo, que caminhava sobre as águas,

e ele via, e eu não vi,

e então, como posso eu, 

não vacilar?

Se é verdade que te encarnaste, Deus,

então conheces esta fraqueza, pois,

como caminharemos altivos em direcção à dor?

Se tu fosses uma perfeita evidência!...

Ah!... Então que maravilha!...

Por vezes é verdade que avançamos

tão trôpegos como bêbados,

ou nem sequer avançamos, é verdade,

cambaleamos, ou então recuamos,

ou então caímos, tanto é o nosso medo,

mas vê bem, vê bem, nós surgimos

em puras crianças e inocentes nascemos crianças,

nascemos tão leves e felizes e nessa altura

os nossos rostos são lisos e alegres,

mas num instante nos perdemos, e de dor em dor,

de perda em perda também outra e outra vez nos perdemos,

e por isso, por isso esta fala é um gaguejar,

o desejo de uma visão que me falasse de tudo o que não sei,

e que nessa altura caminhasse na pura beleza imaculada

que vejo quando vejo este mundo em pura cor,

sem que pense nele e sem que viva nele

a dor da desilusão. Se nos desses apenas aquilo que vemos

quando a beleza nos ultrapassa, e ninguém nos julgasse,

porque tudo o resto, tudo o resto

é extremamente difícil de pensar e a nossa humanidade

não se compadece desse desastre, então, meu Deus,

então nesse momento talvez

uma estranha felicidade me coroasse.»

 

E era isto o que pensava, nessa altura.

XVI


Nesse tempo também tinha tanto medo

que, embora não chorasse, era como se chorasse.

Não sabia o que fazer com esse medo, apenas sofrê-lo

como uma paixão, na casa infinita, na casa abandonada,

na casa onde os nossos quartos eram clareiras no meio do pó,

pois tinha medo que toda a dor me invadisse como a água

das barragens quando se abrem as comportas,

medo de não conseguir sequer respirar, nesse turbilhão,

e um medo absurdo de todas as coisas que se arruinavam,

dos vidros que se partiam, dos degraus que desapareciam,

dos buracos nas tábuas e das telhas que voavam,

e nessa altura era tão intenso esse medo de sentir

o que quer que fosse que estivesse dentro de mim

que cheguei a pensar, confesso, que ainda o melhor

seria a própria morte, quem sabe,

transformar-me em jardim.

XV


É verdade que as pessoas do povo de Israel

choravam com medo de perder o olho direito

em sinal de submissão ao Rei dos Amonitas.

E que essas pessoas também tremiam de medo

diante de Saul, que os chamava para a guerra,

ameaçando desfazer os bois em bocados.

É verdade que estavam cheias de terror

quando o Profeta Samuel pediu a Deus

para mandar chuva e trovões na estação seca

e logo imediatamente choveu e trovejou.

E é verdade que quando foram para a guerra,

os homens estavam cheios de medo.

Viam-se em perigo e apertados por todos os lados,

de tal modo que se escondiam em grutas e em buracos,

entre as rochas, em esconderijos e cisternas.

Esses homens também estavam fracos

e cheios de fome e mesmo assim não tocavam no mel

que escorria das árvores, enquanto atravessavam

a floresta, pois estavam cheios de medo

do Rei que os amaldiçoara, dizendo:

«Maldito seja quem comer qualquer alimento

antes de eu me vingar dos meus inimigos.»

E assim esses homens lutavam esfomeados,

tal como bichos.

XIV


Bem sei, bem sei

que existia nessas orações

um surdo desespero,

violência terrível

que vinha dessa maldita

necessidade de sentido,

que vinha desse limite

contra o qual me desfazia

e na verdade

nunca me fazia,

que vinha da imprevisível

miséria deste corpo

e da falta de certeza

quanto ao juízo moral.

Tu não eras perfeitamente

desconhecido

porque via-te

no mundo vivo

e tão visível que admiro,

mas não te encontrava

quando queria pensar-te

e nisso estava o meu medo,

não a falta de fé,

mas o medo que um vento

desfizesse em bocados

todas as coisas que amava,

porque isso já aconteceu,

porque isso já aconteceu,

se ao menos tivesses falado comigo,

assim como falaste a Caim,

dizendo: «O que fizeste?…»

e então me tivesses dito

que crimes justificavam

tanta dor e desastre

na vida que tu criaste,

porque foi isso que me oprimiu,

foi isso, meu deus, foi isso

que desde sempre me oprimiu,

esse grão de desespero

que se entalou no centro do corpo

e não desapareceu,

nem se esqueceu,

e que foi pensar na criança

que nasce para a dor,

no cume da inocência

e no esplendor

de uma tão pura transparência

assim, na mais viva alegria

desta existência, 

custou-me mais que o infinito,

custou-me mais que não ter

princípio ou fim

o mundo ou o tempo

que pensamos

e não houve qualquer espécie

de filosofia que me consolasse,

entretanto, deus, por isso,

talvez um dia, nem que seja

para depois de morta,

poder perceber alguma coisa

daquilo que me atormentou,

ainda que seja terrível,

por enquanto inspira-me, Deus,

porque este pensamento

sempre me dilacerou, e tu sabes,

por ele a minha vida

encheu-se de contradições.

XIII


E porque não tinha outro nome e tudo o que sabia de ti

era o mundo que aparecia e diante de cuja beleza deslizava,

embora permanecesse de pé, chamava-te deus e dizia essa palavra

como se fosse dita pela primeira vez.

Não sabia se estava contigo, nem sabia se estava em ti,

e muito menos sabia se estava diante de ti,

não se tratava de um estado, muito menos de um facto,

meu Deus, agora, trata-se de uma ligação.

E dizia deus incompreensível, dizia deus desejado,

dizia: Deus, que fazes do meu pensamento um ser alado,

um ser leve e diáfano, suspenso de asas, sobre nuvens elevado,

tu, o mais alto objecto do meu desejo, dizia-te imperfeitamente

porque precisava de te chamar, precisava de te falar,

porque não podia fazê-lo de outro modo e porque

até quando via a minúscula joaninha, vermelha e simétrica,

levemente metalizada, tão elegante e perfeita na sua cor sarapintada,

até mesmo nesse momento não conseguia impedir-me de espontaneamente pensar

no poder que a tinha formado, e no poder que a sustinha, intacta,

no meio deste turbilhão insólito que parece ser o movimento da matéria,

e sentia com toda a clareza que estava diante ti, embora não pudesse explicá-lo,

nem pudesse sequer pensá-lo, é certo, mas não conseguia deixar de imaginar

que eras o vórtice da força abstracta a partir do qual as nebulosas se equilibram,

ponto cristalino, linha de velocidade e toda a vida impensável,

embora testemunhável, esse plano inenarrável onde espantosamente

os seres persistem, estranha matéria inclassificável diante da qual

toda e qualquer análise se paralisa, ou então talvez o próprio vazio que gira

no interior do átomo, esse infindável vazio no qual estrelas e planetas 

deslizam fixamente e em que os homens se erguem, fora do meu pensamento, sim,

mas dentro da emoção que sinto quando vejo um malmequer,

ou uma luz, uma inclinação, certas cores que brilham na noite transparente,

uma criança.

 

E embora o meu coração e a cabeça, é verdade, parecessem dois titãs

que se esmagavam entre si, alternadamente, o certo é que também eu,

tal como tu, me escapava do meu coração, como da minha cabeça,

pois não era coração, nem cabeça, nem estômago, nem pernas,

nem pés, nem mãos, nem sequer vísceras terríveis, invisíveis,

nesse conflito era quase pedra e pó, essa poeira leve e turva dos caminhos

com a qual parece que me fizeste, era até a mãe daquela outra criança

e as linhas das colinas que verdadeiramente ondulam, como o mar,

(porque por elas passava), e até o criminoso que fugiu e o mártir

que se entregou, e também era o ladrão que procurava esconder o rosto,

(sim, por medo, mais que por vergonha, é certo), e até essa mulher exilada

que caminhava, cheia de fome, carregada de água, entre uma multidão

que fugia de uma guerra que não lhe pertencia, e que até ao fim,

erguida nos pés, caminhou, até cair, e essa criança que fizeram explodir

em nome de uma loucura a que chamaram fé, mas ela nem sentiu,

pois era até um único pé, e tudo o que fosse tão diferente, tão díspar,

esse único pé que por acaso ficou da escultura grega em ruínas,

e lá está, esse pé - ó riso, ó dor inextinguível!… Astronauta que via a terra

como um berlinde, pois de tão longe parecia que era o carreiro de mil formigas

e as nuvens que se desvaneciam, dourado escaravelho,

libélula irisada, verde gafanhoto e brônzeo louva-a-deus,

e nesse momento também era aquele ser totalmente à parte,

e de toda a parte, tão absolutamente que já nem faz sentido

dizer que já não é ou que nem nunca chegou a ser,

miríade de tão brilhantes partículas que na fronteira dos corpos

simplesmente se confundem, como névoa ou fumo fugaz,

espécie de velocidade ou movimento, não sei,

pura possibilidade, linha de fuga em que a vida não foge,

mas de um golpe se afirma, no centro da surpresa,

como fogo entre estrépito de mil faúlhas,

miríades de pontos ofuscantes com sua geometria impossível de fixar,

puro acontecimento, ou melhor,

efemeridade.

XII


Porque nessa altura,

nesses dias em que me perdia

insensivelmente e sem aviso,

nessa espécie de loucura,

nesses dias então

de surdo terror e desespero,

sozinha, experimentei rezar,

mas então não me ocorreu,

nem achei que fosse justo,

pedir qualquer coisa

para mim, sendo apenas eu

uma coisa entre as infinitas coisas

deste mundo. Nessa altura,

era como um náufrago

que estando sozinho numa ilha

começa a esculpir rostos

na casca das árvores

com uma pedra

para se manter lúcido

no meio da dor.

E todos os dias, nesses dias,

embora estivesse tão perdida

como alguém que caminhasse

num deserto, sem ver

o fim das dunas ondulantes,

mesmo assim me colocava

diante de ti, sob o que imaginava,

sem conseguir imaginar,

ser o teu testemunho.

Não sabia o que fazer,

mas todos os dias me levantava

do sítio onde tinha caído,

e estava diante de ti.

Falava contigo, de mãos unidas,

e não sei porquê, não sei,

não sei porquê,

entrelaçava os dedos

e todos os dias

me dirigia a ti,

mas não te pedia

absolutamente nada

como se fosse impensável

que tu me pudesses ouvir.

Às vezes era como

uma sonâmbula,

como um autómato,

apagava-me, mas continuava

em estranho movimento,

e mesmo assim,

no outro dia, quando acordava,

estava de novo diante de ti.

Penteava os meus cabelos

depois de lavar o rosto

e vestia as minhas roupas

e olhava-me no espelho,

estranhando estar inteira,

e nessa altura,

como esses cabelos

caíam às mãos cheias

e mesmo assim parecia

que os despenteavas com arte,

da mesma maneira,

e com a mesma arte,

com que despenteias

árvores e campos,

então quando olhava

para a minha cabeça

comecei a pensar,

hesitante: «És tu?...

És tu quem penteia

os meus cabelos?...»

e ao de leve,

começava a pensar:

«Se penteias

as searas

e dispersas o pó

que anda no ar,

porque não hás-de  

tocar em mim

e nos meus cabelos?...»

Mas não sabia como continuar

a pensar nisso nem como

semelhante coisa pudesse

corresponder à verdade.

Agradecia-te ver as cores,

de pé, pois não imaginava,

de joelhos, dirigir-me a ti,

não sabia porquê,

mas não fazia sentido,

também isso me ensinaram,

tal como as mãos, mas o orgulho

e o desafio com que existia

não se compadeciam

dessa resignação.

Simplesmente de manhã

experimentava rezar de mãos unidas, 

porque de manhã,

quando me dirigia a ti,

era um simples ser humano

que só desejava

invocar a tua protecção

do fundo da sua fé

e da sua fragilidade,

assim como da consciência dela,

e não sei porquê, unia as duas mãos

como se fossem uma,

e não sei porquê,

mas era isso que fazia

quando começava o novo dia.

XI


Se este nosso destino, tão frágil,

é como folha de planta e flor nascer ou florir,

para depois de um breve esplendor, depressa cair,

e se a inocência logo em vertigem se devora

e o rosto liso da criança tanto em breve se perde,

se não somos o rio, mas sim essa irrecuperável

gota de água, que uma vez fluindo,

nunca mais regressa a um mesmo ponto, então

porque é que o coração inteiro clama

pelo que se perde, e em altos gritos

clama, mesmo que desse silêncio os gritos

não se elevem em direcção ao céu,

como os gritos dos homens dessas cidades,

Asdod, Gat, Ecron, que Deus castigou,

pois pecavam sem o saber,

e porque é que a alma inteira clama

por tudo o que não regressa, alegria infindável,

pontual, da criança que acabou de chegar,

leveza inenarrável de um jovem a dançar,

riso ou dor, mas ponto único, irrepetível,

porque é que a alma inteira clama

por tudo o que não torna a voltar,

se este nosso destino, tão frágil,

parece ser de uma só vez erguer-se

para logo depois tombar?

X


Uma linha de gafanhotos,

que entretanto chegasse,

como chegaram ao Egipto,

e chegaram depois do sangue,

chegaram depois das rãs,

chegaram depois dos mosquitos,

chegaram depois das moscas,

depois da morte dos bois,

das vacas e dos rebanhos,

chegaram depois das chagas

e do granizo, destruindo

tudo o que estava nos campos,

pessoas, animais e plantas,

e não sobrou nem linho,

nem cevada, porque a cevada

já estava em espiga

e o linho, já em flor,

e chegaram depois disso,

pois tratava-se de coisa pior,

uma linha de gafanhotos

não seria uma linha,

pois não estariam em fila,

uns seguidos de outros,

também não seriam duas linhas,

nem três, nem quatro,

nem cinco, nem seis,

não seria um enxame,

nem sequer uma nuvem,

porque os gafanhotos

que entretanto chegaram

eram impossíveis de contar.

Pior que estar coberto

destes animais, devorando olhos,

narizes, dedos, orelhas,

só a escuridão. Mas entretanto

a escuridão já tinha chegado.

Visão – e a visão é:

um ser humano que permaneça de pé,

ainda assim, em vez de olhos,

já só tem buracos vazados.