XXXIII


De Deus não sei nada

a não ser as árvores

que se levantam desta terra

contra o fundo branco e azul

que os meus olhos fazem

do espaço celeste.
 

De Deus... de Deus afinal

não sei mesmo nada

a não ser esta vida

e na minha imaginação

as esferas gigantes

que no espaço imenso -

suspensas

e numa incrível suavidade

dançam, como se cantassem.
 

E é por isto que só posso

dirigir-me a ti com palavras

que me sejam acessíveis,

porque eu não «sei»

uma árvore, nem sequer

«sei» uma vida,

e é um discurso infantil,

este, com que te falo,

mas são as coisas que entendo.
 

É certo quando falo

do teu amor

que não sei precisamente

do que falo.


E mesmo quando falo

da tua compaixão

é certo que sei só

o que sinto na pele,

no coração, este,

por isso, olha

para estas palavras

como quem vê flores

espalhadas em campos,

olha para elas

como quem vê frutos

pendurados em ramos,

e não deixes de as ver

como coisas tuas.
 

São só imperfeitas

quando comparadas

com o sonho do que eu

desejaria alcançar,

são apenas imperfeitas

quando esgrimidas

pela minha cabeça.
 

Aceita-as, pois,

como se fossem apenas

uma parte dessa outra

sinfonia dos gestos,

os gestos mais simples,

os mais repetidos,

esses gestos

que compomos

ao longo do dia,

como quem compõe

uma acção de graças,

aceita-as apenas

como uma parte

dessa outra

coreografia,

Deus.

XXXII


Erguia-se mesmo em frente

do terraço principal,

debaixo desses canteiros

onde florescem as hortênsias,

uma fonte muito branca

toda feita de calcário,

colocada com graça

entre a gravilha da estrada,

diante da escada.

Esta fonte era composta

por duas taças sobrepostas:

a primeira, maior e mais larga,

assentava no chão

e era, no seu interior,

muito clara e cintilante,

ondulada como uma concha,

cheia de água transparente,

enquanto a segunda, mais pequena,

repousava, como uma pétala,

no topo de uma delicada coluna,

fazendo cair em cascata,

suave e musicalmente,

nova água sobre a primeira.

Brilhavam no fundo da água

pequenas moedinhas douradas,

por causa dessa história infantil,

mas sábia, que ensina

que existe mais esperança

na alegria de um breve desejo

precisamente nesse momento

em que se abre mão dele.
 


XXXI




Foi também num desses dias em que tentava praticar,
com boa vontade, é certo, mas com a maior inexperiência,
algumas destas virtudes que me eram totalmente estranhas,
e em particular esforçava-me, sem qualquer êxito,
por praticar um desligamento de certos afectos,
medos e preocupações que me intoxicavam,
(uma estranha espécie de amor, que me punha doente),
foi num desses dias que me apareceu no espírito,
subitamente e sem esforço, nem premeditação,
a imagem da mãe de Moisés colocando no Nilo
o seu bebé, dentro do cestinho betumado,
na esperança que alguém o recolhesse, mas entregando-se,
nesse gesto, à própria sorte, e lembro-me então de pensar
se haveria algum acto de fé que implicasse
maior coragem do que esse, o de colocar uma criança
totalmente indefesa, dessa maneira, nas mãos de Deus.
Na minha imaginação, porém, eu não via um rio,
mas sim uma infinita via láctea, luminosa,
muito branca e ondulada, sem princípio nem fim,
pois não via onde começasse, nem onde terminasse,
difusa e flutuante, e comecei por colocar aí uma pessoa,
uma certa pessoa que em particular me doía,
e via o seu fino corpo, magro e esguio, e enrolado,
partindo nessa via de luz, e então pensava:
«Estás a ver, Deus?... Está nas tuas mãos.»
Só que ao fim de algumas vezes em que o fiz, porém,
sobreveio um tal alívio, uma tal leveza, e uma tal liberdade
que o que então quis colocar nesse rio de luz foi
o meu próprio coração, que era o que mais me doía,
mas o que então via, com nitidez cortante e gritante,
era um coração muito encarnado, como numa dessas imagens
de anatomia renascentista, com suas veias e artérias cortadas
e separado do corpo, perfeitamente individualizado,
um coração vivo e real, verdadeiro, com um vermelho
que quase com violência se destacava dessa fluidez
muito branca que era a via láctea da minha imaginação,
e eu dizia: «Estás a ver, Deus?... É o meu coração.
Leva-o contigo, por favor. Segura-o nas tuas mãos.»
E entregava-lhe esse ritmo que batia, essa aspiração,
essa respiração e essa dor que doía,
e via-o a deslizar nesse rio de luz
que fluía e lentamente,
muito lentamente,
e surpreendentemente,
fiquei livre. 


XXX


A araucária, esta estranha árvore tão geométrica,

até poderia parecer um cone, se não quisesse observá-la

e decidisse passar por ela, distraidamente, como se não a visse.

O seu tronco muito direito lança-se no céu como uma linha,

quase irreal, e depois, nesse florescimento radial

em forma de estrela, divide-se e torna a dividir-se

em ramos e em sub-ramos, como um fractal.

Diante dela, parada, vejo porém como transgride,

nesse florescimento livre, o outro cone imaginário,

o da minha imaginação, porque os seu ramos crescem,

subtis e irregulares, com uma estranha fantasia alucinante

que ao mesmo tempo me atrai e confronta,

com uma curiosa forma de dor.

Sempre me fascinaram e ao mesmo tempo repeliram

esta espécie de árvores, sem que nunca percebesse porquê.

Sempre considerei que amava mais essoutra sensualidade

dos ciprestes, dos pinheiros, dos plátanos, das oliveiras,

dos eucaliptos. Mas dou por mim a pensar, a propósito

da forma como crescem os ramos da aurocária,

como ela é tão parecida afinal

com essa viva irregularidade das outras árvores

que não têm, como é evidente, copas

perfeitamente circulares, e dou por mim a pensar,

a propósito das linhas desse cone imaginário

que a árvore não cumpre, como também esta vida,

afinal, é mais surpreendente, mais empolgante,

mais cómica, mais trágica e mais divertida

do que qualquer coisa que pudesse alguma vez

ter imaginado, sozinha, eu mais a minha cabeça.

Estranha, nova e alegre consciência,

esta que faz da vida uma desconhecida

e fascinante aventura imprevisível,

porque afinal nunca saberei, da vida,

como dirá o seu excesso.