XXV


Sobre o corpo humano e o seu destino,

há quem pense que é insensata a questão sobre com que corpo

é que iremos atravessar a nossa morte, se com este,

que temos agora, se com aquele que tivemos em crianças,

se com o outro que teremos em velhos, um dia,

se com o corpo moribundo, se com o corpo enterrado,

se com o corpo corrompido por essas fraquezas e doenças

a que tenhamos sucumbido, em vida, ou esse corpo virtual,

o corpo que nunca chegamos a ter, neste mundo, mas que teremos,

eventualmente, através dos intervalos que unem este mundo a outros mundos

e que nem sequer vislumbramos, aí sim,

o corpo sem nenhuma mutilação, porventura esse outro corpo,

o glorioso, esse que possa ser o corpo

de uma pura e viva, completa e absoluta actividade criativa.

Há quem pense que o próprio corpo desta vida

tal como a vivemos neste mundo é como a semente

de outra coisa que está por vir, igual a esses grãos

de plantas vivas, que se desfazem e desaparecem,

nesta terra, cada um deles, para dar lugar

ao seu particular florescimento, sejam grãos de trigo

ou sementes de outra espécie, e que assim

também estes corpos é necessário que sejam enterrados

na terra, como grãos, para que então possam florescer,

depois da morte, para a vida eterna. «Nem todos morreremos.»

É o que dizem. «Mas todos havemos de ser transformados.»

E eu pergunto: esta íntima aspiração da vida fluente

sem ser interrompida, quem, com absoluta sinceridade,

poderá afirmar que alguma vez não a tenha tido,

e esta visão do seu corpo como um abismo,

como uma espiral de corrupção e redenção, quem,

que alguma vez tenha começado a pensar, não a pensou?

Também para mim esta habitação na terra

se assemelha a uma dessas tendas do deserto,

uma dessas amplas e sumptuosas tendas de príncipes

persas do século XII, forradas de veludos e tapetes,

tingidas de púrpura e bordadas de seda, esta habitação

assemelha-se a essa tenda que se vai desfiando e cujas paredes

ondulam e tremem com o vento, à sombra

de uma duna no deserto, ou à beira de um oásis.

E nem sequer posso negar que já tenha tocado

essa íntima aspiração de querer estar dentro

de uma outra casa, de um outro corpo, mais distante,

ou mais próximo, e em que não me sentisse «assim tão despida»,

e mesmo sendo capaz de amar esta pele, com a sua peculiar maciez,

e deslize igualmente nela, como deslizo numa paisagem,

também não posso negar que conheço bem

esse sonho de suspirar por um outro lugar em que tudo

o que é mais mortal e corruptível, como a carne,

não deixe de ser eternamente absorvido pela vida, nem de fluir.

Porque às vezes nesta vida este corpo também se liberta,

com uma espécie de abrupto choque ou violência,

e é como se os panos dessa tenda, sob os golpes

irregulares mas implacáveis de uma inesperada intempérie,

se soltassem dos seus nós, e ondulassem e batessem,

suspensos das estacas, em sintonia com as ondas da areia

e com as linhas da paisagem, e em comunhão com elas,

em sintonia com o ar e com o vento, com as nuvens que deslizam,

com as águas que correm e com a luz que se extingue,

em sintonia até com o excesso da própria tempestade

e, neste caso, violência e suavidade deixam de diferir, sequer,

porque neste movimento é como se pele e atmosfera

formassem, já não uma oposição, mas sim um plano.

Sinto-me então como se fosse a própria onda que atravessa

esse tecido e faz dele um mar, qualquer coisa

tão perfeitamente livre e fluída que até o suave limite

dessa bainha terminal passa por ser uma dor que me trava e cancela,

como um obstáculo que se sofre e que já projecta, violento,

uma outra onda de choque, uma outra dor que me diz:

«Quando te libertarás, enfim, das tuas estacas, ó tenda suave?...

Quando é que por fim te desfiarás todo, macio veludo,

e te desfarás em pó, invisível, entre os grãos de areia?...

E quando chegará enfim esse momento em que te desprenderás, 

liberta finalmente, finalmente livre, destes próprios ossos,

que são como estacas, finas e nuas, plantadas no deserto?...»