Sobre o corpo humano e o seu
destino,
há quem pense que é insensata a
questão sobre com que corpo
é que iremos atravessar a nossa
morte, se com este,
que temos agora, se com aquele que
tivemos em crianças,
se com o outro que teremos em
velhos, um dia,
se com o corpo moribundo, se com o
corpo enterrado,
se com o corpo corrompido por essas
fraquezas e doenças
a que tenhamos sucumbido, em vida,
ou esse corpo virtual,
o corpo que nunca chegamos a ter,
neste mundo, mas que teremos,
eventualmente, através dos
intervalos que unem este mundo a outros mundos
e que nem sequer vislumbramos, aí
sim,
o corpo sem nenhuma mutilação,
porventura esse outro corpo,
o glorioso, esse que possa ser o
corpo
de uma pura e viva, completa e
absoluta actividade criativa.
Há quem pense que o próprio corpo
desta vida
tal como a vivemos neste mundo é
como a semente
de outra coisa que está por vir,
igual a esses grãos
de plantas vivas, que se desfazem e
desaparecem,
nesta terra, cada um deles, para
dar lugar
ao seu particular florescimento,
sejam grãos de trigo
ou sementes de outra espécie, e que
assim
também estes corpos é necessário
que sejam enterrados
na terra, como grãos, para que
então possam florescer,
depois da morte, para a vida
eterna. «Nem todos morreremos.»
É o que dizem. «Mas todos havemos
de ser transformados.»
E eu pergunto: esta íntima
aspiração da vida fluente
sem ser interrompida, quem, com
absoluta sinceridade,
poderá afirmar que alguma vez não a
tenha tido,
e esta visão do seu corpo como um
abismo,
como uma espiral de corrupção e
redenção, quem,
que alguma vez tenha começado a
pensar, não a pensou?
Também para mim esta habitação na
terra
se assemelha a uma dessas tendas do
deserto,
uma dessas amplas e sumptuosas
tendas de príncipes
persas do século XII, forradas de
veludos e tapetes,
tingidas de púrpura e bordadas de
seda, esta habitação
assemelha-se a essa tenda que se
vai desfiando e cujas paredes
ondulam e tremem com o vento, à
sombra
de uma duna no deserto, ou à beira
de um oásis.
E nem sequer posso negar que já
tenha tocado
essa íntima aspiração de querer
estar dentro
de uma outra casa, de um outro
corpo, mais distante,
ou mais próximo, e em que não me
sentisse «assim tão despida»,
e mesmo sendo capaz de amar esta
pele, com a sua peculiar maciez,
e deslize igualmente nela, como
deslizo numa paisagem,
também não posso negar que conheço
bem
esse sonho de suspirar por um outro
lugar em que tudo
o que é mais mortal e corruptível,
como a carne,
não deixe de ser eternamente absorvido
pela vida, nem de fluir.
Porque às vezes nesta vida este
corpo também se liberta,
com uma espécie de abrupto choque
ou violência,
e é como se os panos dessa tenda,
sob os golpes
irregulares mas implacáveis de uma
inesperada intempérie,
se soltassem dos seus nós, e
ondulassem e batessem,
suspensos das estacas, em sintonia
com as ondas da areia
e com as linhas da paisagem, e em
comunhão com elas,
em sintonia com o ar e com o vento,
com as nuvens que deslizam,
com as águas que correm e com a luz
que se extingue,
em sintonia até com o excesso da
própria tempestade
e, neste caso, violência e
suavidade deixam de diferir, sequer,
porque neste movimento é como se
pele e atmosfera
formassem, já não uma oposição, mas
sim um plano.
Sinto-me então como se fosse a
própria onda que atravessa
esse tecido e faz dele um mar,
qualquer coisa
tão perfeitamente livre e fluída
que até o suave limite
dessa bainha terminal passa por ser
uma dor que me trava e cancela,
como um obstáculo que se sofre e
que já projecta, violento,
uma outra onda de choque, uma outra
dor que me diz:
«Quando te libertarás, enfim, das
tuas estacas, ó tenda suave?...
Quando é que por fim te desfiarás
todo, macio veludo,
e te desfarás em pó, invisível,
entre os grãos de areia?...
E quando chegará enfim esse momento
em que te desprenderás,
liberta finalmente, finalmente
livre, destes próprios ossos,
que são como estacas, finas e nuas,
plantadas no deserto?...»