V


Porque eu quero ser um pintor e ali,

na beira daquele caminho, naquela curva,

precisamente, colocar uma tela e pintar,

ou seja, pintar exactamente o que vejo

estando ali sentada diante da tela,

na paisagem comigo em mim,

ou comigo nela, com aquelas linhas

que nos campos me atravessam,

cantando, e na sua geométrica irregularidade,

me absorvem, me concentram e me entreabrem.

Porque o verde que então misturasse,

fazendo girar o pincel, seria só a continuação

da linha que no campo, fluiria da minha mão.

Pois não há mais buxos, nem arbustos,

nos traços infinitamente suaves

que dividem as hortas, nem há sulcos negros

rasgando a terra acabada de semear,

não há lotes de terreno contrapostos,

em diferentes cores, como peças de lego,

nem há essas ínfimas casinhas brancas

com seus telhados brilhantes,

ou linhas de choupos, dividindo propriedades,

que faço com uma espátula, premindo o óleo em pasta,

já não há levíssimos caminhos de areias serpenteantes,

nem pedras amontoadas, aqui e ali, inclinações,

uma colina, um vale e uma montanha.

Tudo o que há são linhas, que como trilos hesitam,

em irregular polifonia, música das múltiplas cores

que em mim cantam, e tantos verdes sem nome

que entre si ressoam, compondo o quadro.

Tudo o que há passou de ser cor para ser música,

traço composto para melodia contraposta,

som mudo e que ainda assim, estranhamente,

é silêncio que dança,

(...)

esta cor que canta.

IV


Porque se a flor se inclina,

com a delicada corola

sob o vento

e subitamente canta,

porque é certo que canta,

e canta em harmonia

com a curva do caminho,

com o branco das nuvens

e com as hastes douradas

das ervas secas que ondulam -

e se entre a linha da areia,

no chão do pátio,

e a linha branca do muro,

uma surda harmonia

sem dúvida se estabelece,

e se ainda por todo o lado,

como num quadro,

uma espécie de violência musical

faz cantar e quer falar,

sem que um só nome

possa dizer,

então aquela ideia de Kant

segundo a qual

Deus é impensável

ainda me consola,

e sempre

me consolará.

III


Vejam, porque vos digo, assim, desta maneira:

«Em cima da pequena escrivaninha em laca negra,

com seus suaves embutidos de madrepérola,

delicadamente desenhando o encontro

de dois pássaros amorosos, enamorados,

repousa imóvel uma jarra azul em cloisonné

pontuando discreta com sua perfeita quietude

a harmonia da sala e, no interior da casa,

a silenciosa sinfonia dos objectos.

Dois quadros que um avô desconhecido disse

serem de Toulouse-Lautrec, comprados

a um judeu em fuga, vindo de Paris,

durante a Segunda Guerra Mundial,

esses dois quadros pendurados

sobre a pequena escrivaninha, digo-vos,

são de cavalos, e num deles a estranha sombra

de um homem, com dois chicotes, um em cada mão,

laçarote e fraque, no centro de um circo,

a estranha sombra do homem também é cavalo,

sombra impossível, acontecimento inenarrável

do homem a tornar-se cavalo no quadro

que é cavalo, como se já não houvesse,

entre mim e mim, ou entre mim e ele, esse intervalo.

Olhando para os quadros penso vagamente

em coisas que não têm nada a ver.

Laranjas, morangos, cerejas,

uma garrafa de leite e um pedaço de pão,

manteiga, foie gras e um resto de pesto italiano,

essas coisas que sobraram da última refeição.»

E digo-vos: «Vejam, vocês que me ouvem, é certo

que sobre o tampo aberto da pequena escrivaninha

tenho pousados os dois braços, imóveis as duas mãos

e é verdade, é verdade que o silêncio da casa canta

enquanto no outro quarto alguém dorme, respirando na penumbra,

e lá fora, sob a radiante luz do dia,

explodem as hortênsias em rosa e azul,

em filas, logo a seguir ao terraço,

e por tudo isso muito quieta eu peço,

de antemão conhecendo a desilusão desse desejo,

que o tempo se imobilize.»

II


Porque o corpo que tu tocas, vida, este corpo intensivo

que como um cabo de aço se suspende, tenso e leve,

entre dois mastros, o corpo que tu tocas

parece uma sinfonia, parece um coral, parece a onda

que levemente desliza em suave e tensa vibração

e como poeira ou espuma transparente

se dissipa. Assim se sobrepõe o deslizamento

em planos repentinos e extensões suaves, e o prazer

sucede-se nos golpes súbitos que o desfazem, ao corpo,

tal como a música se faz e desfaz, tal como o sopro

que sempre recomeça e logo se extingue, neste abraço,

e assim divago e deslizo, nesta paisagem, como no mundo,

como num quadro, e neste silêncio, como numa peça de Ravel.

I

 
Vida que vejo como linha invisível que traça no céu a ave veloz,

voando em pura e altiva liberdade, no ar suspensa,
 
e que vejo como movimento infinito de mil seres,
 
cada um em seus vários momentos de glória, entre o nascimento e a morte,
 
coroa de luz, périplo de um sopro que respira,
 
tu és o esplendor vivo de todas as coisas mudas que cantam,
 
porque a tua presença é um hino.
 
E são as flores que se erguem intocáveis nos campos,
 
e que o vento raras vezes desequilibra,
 
são as árvores de ramos esticados em direcção ao infinito,
 
com as folhas penduradas sob o abismo das galáxias,
 
são as crianças acabadas de nascer, que as mãos recebem,
 
despidas e sem palavras, e que gritam,
 
e os animais mudos que a natureza abriga, e os caminhos entre as terras,
 
são as pedras silenciosas que nas encostas dos montes se amontoam
 
em discreta harmonia,
 
são estes mudos que não falam quem canta mais alto em tua glória
 
e o silêncio das paisagens quase ensurdece, vida espantosa,
 
pela intensidade inominável
 
com que te celebra.