Que bom seria se pudesse dizer, da
minha alma,
que a sua conduta fosse
irrepreensível,
como se agora mesmo ela nascera,
e livre pudesse então partir,
imaculada,
nesse luminoso cortejo dos bem
aventurados,
que em redor das estrelas, como
descreve Platão,
viajam felizes para o topo do céu,
essa cristalina morada
onde se diz que as cores
são mais brilhantes e variadas, mas
confesso:
não consigo sequer pensar
que seja verdade que nós humanos
estejamos para esse mundo
impensável
como os peixes quando põem a cabeça
fora de água,
e olham para a terra maravilhosa
que nós pisamos,
lamentando esse mar cheio de sal e
saibro
que é o abismo de toda a escuridão.
E mesmo que voltasse a esta vida
carregada com um novo e inesperado
quinhão de dor, mesmo assim
desejaria,
ainda assim, fazer parte deste
esplendor,
porque ser uma pessoa, abrir
os olhos e ver
tantas maravilhas e luminosas,
irisadas cores,
o céu muito azul e uniforme, ao
mesmo tempo liso e fundo,
como um ecrã rasgado no infinito,
e o verde puro e transparente
que explode em todo o lado,
brilhante e variado,
porque ser uma pessoa, ter
corpo e concentração,
poder sentir e pensar, e ter dois
olhos
que captam a luz, ouvidos, boca,
mãos e coração,
e girar em volta e ver, erguida
sobre os pés,
disso também se pode dizer, é
verdade,
que seja a bem-aventurança.
E por isso quereria sempre
chegar aqui
e participar, fazer qualquer coisa,
nem sei bem o quê,
talvez cultivar um jardim, talvez
erguer uma casa,
tocar ou dançar, sem ninguém a
olhar,
debaixo de uma árvore, não sei,
pois teria de me inspirar, e de me
abandonar,
pôr-me no meu caminho e deixar-me
fluir
para conseguir essa proeza
de poder realizar qualquer coisa de
bom
e assim conseguir ficar
em harmonia com o resto.