XXII


Que bom seria se pudesse dizer, da minha alma,

que a sua conduta fosse irrepreensível,

como se agora mesmo ela nascera,

e livre pudesse então partir, imaculada,

nesse luminoso cortejo dos bem aventurados,

que em redor das estrelas, como descreve Platão,

viajam felizes para o topo do céu,

essa cristalina morada onde se diz que as cores

são mais brilhantes e variadas, mas confesso:

não consigo sequer pensar

que seja verdade que nós humanos

estejamos para esse mundo impensável

como os peixes quando põem a cabeça fora de água,

e olham para a terra maravilhosa que nós pisamos,

lamentando esse mar cheio de sal e saibro

que é o abismo de toda a escuridão.

E mesmo que voltasse a esta vida

carregada com um novo e inesperado

quinhão de dor, mesmo assim desejaria,

ainda assim, fazer parte deste esplendor,

porque ser uma pessoa, abrir os olhos e ver

tantas maravilhas e luminosas, irisadas cores,

o céu muito azul e uniforme, ao mesmo tempo liso e fundo,

como um ecrã rasgado no infinito,

e o verde puro e transparente

que explode em todo o lado, brilhante e variado,

porque ser uma pessoa, ter corpo e concentração,

poder sentir e pensar, e ter dois olhos

que captam a luz, ouvidos, boca, mãos e coração,

e girar em volta e ver, erguida sobre os pés,

disso também se pode dizer, é verdade,

que seja a bem-aventurança.

E por isso quereria sempre chegar aqui

e participar, fazer qualquer coisa, nem sei bem o quê,

talvez cultivar um jardim, talvez erguer uma casa,

tocar ou dançar, sem ninguém a olhar,

debaixo de uma árvore, não sei,

pois teria de me inspirar, e de me abandonar,

pôr-me no meu caminho e deixar-me fluir

para conseguir essa proeza

de poder realizar qualquer coisa de bom

e assim conseguir ficar

em harmonia com o resto.