IX


Porque esse notável tormento, essa dor de existir e de pensar como quem cai,

esse desespero de não encontrar no grito a dimensão necessária,

ou na vida a velocidade suficiente, e mesmo essa pressa excessiva

e quase urgente de morrer, a violência da paixão que já não podia

senão destruir, tudo isso, um dia, disse a mim própria, determinada,

que havia de conduzir, reduzir, condensar, fazer refluir,

com nova disciplina e discreta, implacável, mas suave

austeridade, a uma particular delicadeza atómica, infinitesimal,

e depois ao fio de ouro que seria da espessura de um cabelo,

esse fio discreto que quase imperceptivelmente circula

na luz de um tecido brocado, minha mortalha,

meu cadeado, veste hierática, minha roupa pintada,

tecido real de que o pintor fez quadro, impensável

capricho de um bordado, verso que hás-de ser corpo, vai,

mostra tu como se faz de excesso e violência a tranquila grandeza

do templo em ruínas, com suas brancas colunas e imóvel frontão,

pedra sobre pedra, essas pedras cortadas, do solo arrancadas,

por mãos carregadas, pedras que como gritos do deserto emergem,

gritos mudos, gritos imóveis, gritos parados,

gritos como poemas - ou gritos como quadros.

VIII


Habitando a casa, num outro quarto,

sobre o móvel alto de charão, com suas figurinhas

orientais em relevo, feitas de jade, marfim e madrepérola,

sobre esse móvel ergue-se a figura de Maria,

Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal,

com seus cabelos dispersos sobre as costas,

escultura que em tempos pertenceu à bisavó M.

e de quem se diz que um dia terá caído e que se terá partido,

mas que alguém recuperou e agora já não é possível ver

com perfeita clareza exactamente onde se partiu.

Esta Maria de rosto compassivo e vestes brancas

e azuis, de pés escondidos pelo manto que cai

e pela nuvem de onde emergem, suaves,

três rostos infantis que são anjos, diante dela

arde por vezes uma minúscula vela, pois trata-se

de um procedimento antigo, talvez um gesto

inexplicável contra o medo, porque a luz

da pequena chama que arde é tão tranquila

e tão suave que perto dela uma espécie de companhia

parece que acontece, tornando o sono menos inseguro.

Também as figurinhas orientais com rostos de marfim

e vestes de jade e madrepérola, dispostas ao longo das gavetas

como em pranchas de banda desenhada,

também elas parece que contam uma história,

pois há aí uma criança que cai no chão, senhoras

que se abanam com um leque e um homem que escreve,

debruçado sobre a mesa onde se estende um texto chinês.

Por tudo isto é preciso falar destas insólitas companhias,

porque na imensa casa semi desabitada, casa isolada

no meio de campos e campos, casa com mais de cem portas

 e oitenta janelas e seus quartos abandonados

onde já ninguém entra, suas alas arruinadas,

sem telhado, ou onde o chão desabou,

nesta casa quando desce a noite a imensa solidão

já não se pode ignorar e os poucos quartos habitados

são como ilhas, barcos vulneráveis que se iluminam,

ou frágeis balões que pairam no abismo,

sobre a escuridão infinita, que sobre nós desce,

porque as nossas salas são grandes mas dentro

da imensa casa parecem apenas muito pequenas

e contra a estranha ruína que as cerca

a minúscula chama arde, no centro da luz dourada,

apaziguando o medo e tornando o sono

menos inseguro.

VII


No fim da alameda de ciprestes que se estende,

com suas areias brancas, ao longo dos campos cultivados,

no fim da alameda de ciprestes ergue-se o terraço

em tijoleira muito gasta que está defronte da sala principal,

esta sala onde Maria do Mar dispôs a mesa antiga

e onde se agitam, nas altas paredes, os frescos debotados

que terão sido a glória de outros tempos, mas que agora,

como um puzzle, é preciso completar com certa imaginação

por causa dos lugares em que as cores se apagaram.

Logo no início, perto das altas janelas que dão para o terraço,

ergue-se uma pequena árvore e à sua sombra,

encostadas uma à outra, em afável intimidade,

duas raparigas sorriem e conversam, entre o rosa e o azul

dos seus delicados vestidos. Ficamos por ali, olhando

e continuando em pensamento essa imaginária conversa

que decerto é sobre os rapazes que adiante, no meio de um lago,

remam num pequeno barco, parecendo muito alegres.

Já na outra parede, quebrada por duas altas portas duplas,

com suas velhas bandeiras envidraçadas, mas já

sem os vidros, surge a clara imagem da mesa do piquenique,

com flores espalhadas sobre a toalha, entre o pão

e os jarros abaulados e as diversas frutas, ainda apelativas

nas suas cores incompletas e debotadas.

Atrás uma camponesa avança, camisa em desalinho,

saia muito larga coberta com um branco avental

e um cesto sobre a cabeça, absorvida no destino

de uma séria tarefa, para nós desconhecida,

talvez colocar qualquer coisa em cima da mesa branca,

pedaços de pão ou cachos de uvas, não sabemos.

Rodando suavemente o pescoço e girando sobre o corpo,

depois da segunda porta, na terceira parede,

aí podemos ver, no outro extremo da sala,

no meio de um grande espaço em que o estuque caiu,

levando consigo as alegres imagens, entre duas silvas

repletas de amoras, podemos ver um grupo de três crianças

muito entretidas e que brincam, mas enquanto uma delas,

absorvida no seu pião, se volta para nós, distraída,

as outras duas, bem agachadas em torno do seu jogo invisível

estão de costas para nós, com seus rostos bem escondidos,

e despertam na nossa imaginação, surpreendentemente,

toda a infância, essa infância do tempo infinito,

da confiante tranquilidade e dos gestos intermináveis,

essa infância de uma outra paz, de uma outra vida,

e que se desenrolava em perfeita segurança,

na transparente alegria de existir

e num outro tempo sem tempo.

VI


Porque o verde destas árvores que se erguem,

como catedrais, ao longo do caminho

que entre os campos serpenteia,

este verde brilha de forma incompreensível,

a par com a vibração das outras cores,

que é inominável, e que vejo sem poder repetir,

como se o pó estelar das próprias nebulosas

no movimento irregular da folhagem

aí se contivesse e aí incluísse,

absurdamente, bocados de infinito.

Qualquer coisa definitivamente se abre

no verde que assim cintila,

e qualquer coisa se escapa

nesta estranha transparência.

Tal como a escuridão da noite

que em intrigante profundidade luz,

tal como essa escuridão brilhante,

que certos pintores captaram

nos seus quadros, conseguindo

como que por milagre que o seu negro

também brilhasse, assim também

este verde parece estranhamente

abrir caminho para um outro plano,

poeira estelar que em discretas linhas

de fuga parte, com incrível velocidade,

para o seu particular, inapreensível destino.

 

Não há paisagens que sejam opacas.

Mesmo de noite, o que estes olhos captam

são luminosas transparências, na suave escuridão

que ao toque seria uma espécie de veludo,

se fosse possível tocar uma visão

com palavras de uma aproximação

mais que perfeita.