XXVIII


Foi também quando era criança,

e bem pequena, com cerca de nove anos,

que me zanguei com Deus, e deixei de lhe falar.

Não sei se posso dizer, com toda a precisão

e justiça, exactamente como foi, mas lembro-me

que nessa altura passavam na televisão

as imagens da fome na Etiópia e sempre apareciam,

desoladas e imóveis, aquelas pobres crianças

que nem sequer choravam e tinham nos rostos

os olhos opacos e inexpressivos, e cobertos de moscas,

e as grandes barrigas, enormes nos seus pequenos

corpos nus, mal apoiadas nas finas pernas,

com os ossos dos joelhos salientes, muito visíveis.

«Mãe, porque é que têm estas barrigas tão grandes?...»

«Têm muita fome.» - Foi a resposta.

Parecia um contra-senso, e lembro-me

de sentir na pele uma espécie particular de absurdo,

porque a mim sobrava-me a comida

e eu, mimada, fazia birras para comer

e recusava-me, quando não gostava

daquela comida que às vezes me davam.

«Não podemos enviar-lhes a comida que nos sobra?...»

«Estraga-se pelo caminho, porque

demora muito tempo a chegar.»

«E porque é que estes meninos

não enxotam as moscas da cara?...»

«Já não têm forças.» - Foi a resposta.

Mas eu continuei a pensar, sozinha e calada,

no homem ou na mulher que seguravam

a câmara de filmar, e tinham forças para o fazer

mas não as tinham, no que dizia respeito

a enxotar as moscas do rosto e dos olhos

daquelas pequenas crianças, ali paradas,

e nesse momento, nesse preciso momento,

qualquer coisa em mim se quebrou

de uma forma absolutamente radical,

essa antiga confiança, essa alegria

de ser certo, no meu coração,

que havia um Deus de amor

especialmente para nós, crianças,

e ainda hoje penso como é possível

neste mundo imaginar-se que é possível

maltratar uma criança numa ponta

sem que morra uma criança na outra.