XXVII


Quando era ainda bem pequena

e tinha três ou quatro anos, a minha mãe,

no tempo frio, tinha o hábito de me envolver numa manta,

antes de me deitar na cama, e ela enrolava

essa manta bem apertada em torno do meu corpo,

como se eu fosse um daqueles bebés russos

enfaixados e metidos dentro de um cestinho,

tão bem enrolados, que nem se podiam mexer.

Depois ajoelhava-se aos pés da minha cama

e envolvia as minhas pequenas mãos, unidas,

dentro das suas, e rezava comigo: «Pai nosso,

que estais no céu...» «Avé Maria, cheia de graça...»

E por fim, a única oração

que meu espírito de criança percebia:

«Anjinho da Guarda, minha doce companhia,

guardai-me de noite e de dia.»

E lembro-me bem de adormecer tão alegre

naquele mimo, e de me imaginar aninhada

dentro das asas fofas desse anjinho,

tal como o filhote cangurú

na bolsa da mãe cangurú,

e talvez por isso, ainda criança,

mas mais crescida, mesmo sozinha,

sempre rezava, antes de me deitar,

essas três orações, mesmo as duas primeiras

sendo como canções em língua estrangeira,

qualquer coisa que imitava,

sem compreender, e no fim terminava

com uma coisa da minha invenção,

que era mandar beijinhos

para as pessoas que não estavam comigo,

como se deus fosse, na minha imaginação infantil,

alguma espécie de correio, e nas férias,

beijinhos à mãe, ao pai, ao avô, à avó,

e no que pensava, para adormecer,

era nessas pequenas coisas

que me tinham dado especial alegria,

um banho de mar, um lanche de crepes,

uma brincadeira com amigos que fosse

particularmente divertida e inspirada...

porque era tão pequena, nessa altura,

e tão alegre, e hoje gostava, mas não sei como

abraçar de novo essa criança tão simples

e que nas suas orações não se lembrava

sequer de um único pedido, mas apenas de amar,

e à sua maneira muito própria,

de agradecer.

XXVI


Certa noite, vinha de carro, a guiar,

e parei num sinal vermelho.

De um lado estava o mar

com os navios de carga iluminados

como diademas de brilhantes

à entrada do rio, parados

naquela escuridão transparente,

que sempre me fascina e desafia,

e do outro lado havia uma rua

iluminada por postes de luz branca,

levemente inclinada e que subia,

ladeada de pequenas casas,

e no início dessa rua,

uma bomba de gasolina

já um pouco decadente

no meio do alcatrão e do cimento

e com um velho néon de cores

transparentes e ácidas.

Era para esse lado que olhava,

para a bomba de gasolina

e para as linhas dançantes

que compunham as luzes brancas

e ácidas dos paralelepípedos

que eram os néons, e para as letras

que compunham as palavras

e que estavam iluminadas,

meros logotipos e anúncios

que não tinham nada de especial,

pelo contrário, poderia até

dizer-se que eram feios,

de um certo ponto de vista,

mas de repente fui ali atingida

por uma emoção peculiar

e tão forte que o que queria

era ficar para sempre ali parada

e que o sinal vermelho

já não mudasse para verde.

«Deus, afinal,

não me leves tão depressa,

porque não quero despedir-me ainda,

nem daqui, nem deste mundo.»

Pois era como se aquela emoção

tivesse feito de mim um cristal,

e queria ficar sempre ali,

imóvel, parada,

naquele colorido que vibrava

e dançava e parecia que cantava,

essa espécie peculiar de alegria,

transparente e vibrante,

mas estava deveras intrigada,

intrigada porque já tinha

ali passado muitas vezes,

sem nunca sentir nada

de semelhante diante

desse quadro imperceptível.

«De certeza não serei

apenas eu, cruzada neste ângulo,

com este bocado de mundo...

Não sou só eu, minúscula,

a ver no carro parada

uma perspectiva insignificante.»

E tudo o que me ocorria pensar,

como se  tocasse na margem

de algo mais, tocando

com a ponta dos dedos,

mas sem poder ir mais além,

da mesma forma que alguém,

no limite do corpo se esticando,

pratica um movimento de torção

e quer, mas não consegue,

dobrar-se ainda mais, tudo

o que me ocorria pensar era:

«Será que és tu, Deus,

quem espreita agora,

agora mesmo,

pelos meus olhos e sente

com o meu coração?...»

XXV


Sobre o corpo humano e o seu destino,

há quem pense que é insensata a questão sobre com que corpo

é que iremos atravessar a nossa morte, se com este,

que temos agora, se com aquele que tivemos em crianças,

se com o outro que teremos em velhos, um dia,

se com o corpo moribundo, se com o corpo enterrado,

se com o corpo corrompido por essas fraquezas e doenças

a que tenhamos sucumbido, em vida, ou esse corpo virtual,

o corpo que nunca chegamos a ter, neste mundo, mas que teremos,

eventualmente, através dos intervalos que unem este mundo a outros mundos

e que nem sequer vislumbramos, aí sim,

o corpo sem nenhuma mutilação, porventura esse outro corpo,

o glorioso, esse que possa ser o corpo

de uma pura e viva, completa e absoluta actividade criativa.

Há quem pense que o próprio corpo desta vida

tal como a vivemos neste mundo é como a semente

de outra coisa que está por vir, igual a esses grãos

de plantas vivas, que se desfazem e desaparecem,

nesta terra, cada um deles, para dar lugar

ao seu particular florescimento, sejam grãos de trigo

ou sementes de outra espécie, e que assim

também estes corpos é necessário que sejam enterrados

na terra, como grãos, para que então possam florescer,

depois da morte, para a vida eterna. «Nem todos morreremos.»

É o que dizem. «Mas todos havemos de ser transformados.»

E eu pergunto: esta íntima aspiração da vida fluente

sem ser interrompida, quem, com absoluta sinceridade,

poderá afirmar que alguma vez não a tenha tido,

e esta visão do seu corpo como um abismo,

como uma espiral de corrupção e redenção, quem,

que alguma vez tenha começado a pensar, não a pensou?

Também para mim esta habitação na terra

se assemelha a uma dessas tendas do deserto,

uma dessas amplas e sumptuosas tendas de príncipes

persas do século XII, forradas de veludos e tapetes,

tingidas de púrpura e bordadas de seda, esta habitação

assemelha-se a essa tenda que se vai desfiando e cujas paredes

ondulam e tremem com o vento, à sombra

de uma duna no deserto, ou à beira de um oásis.

E nem sequer posso negar que já tenha tocado

essa íntima aspiração de querer estar dentro

de uma outra casa, de um outro corpo, mais distante,

ou mais próximo, e em que não me sentisse «assim tão despida»,

e mesmo sendo capaz de amar esta pele, com a sua peculiar maciez,

e deslize igualmente nela, como deslizo numa paisagem,

também não posso negar que conheço bem

esse sonho de suspirar por um outro lugar em que tudo

o que é mais mortal e corruptível, como a carne,

não deixe de ser eternamente absorvido pela vida, nem de fluir.

Porque às vezes nesta vida este corpo também se liberta,

com uma espécie de abrupto choque ou violência,

e é como se os panos dessa tenda, sob os golpes

irregulares mas implacáveis de uma inesperada intempérie,

se soltassem dos seus nós, e ondulassem e batessem,

suspensos das estacas, em sintonia com as ondas da areia

e com as linhas da paisagem, e em comunhão com elas,

em sintonia com o ar e com o vento, com as nuvens que deslizam,

com as águas que correm e com a luz que se extingue,

em sintonia até com o excesso da própria tempestade

e, neste caso, violência e suavidade deixam de diferir, sequer,

porque neste movimento é como se pele e atmosfera

formassem, já não uma oposição, mas sim um plano.

Sinto-me então como se fosse a própria onda que atravessa

esse tecido e faz dele um mar, qualquer coisa

tão perfeitamente livre e fluída que até o suave limite

dessa bainha terminal passa por ser uma dor que me trava e cancela,

como um obstáculo que se sofre e que já projecta, violento,

uma outra onda de choque, uma outra dor que me diz:

«Quando te libertarás, enfim, das tuas estacas, ó tenda suave?...

Quando é que por fim te desfiarás todo, macio veludo,

e te desfarás em pó, invisível, entre os grãos de areia?...

E quando chegará enfim esse momento em que te desprenderás, 

liberta finalmente, finalmente livre, destes próprios ossos,

que são como estacas, finas e nuas, plantadas no deserto?...»


XXIV


Em certos momentos, confesso -

por dentro é como uma fábrica

em que as máquinas aterradoras

se movem com vida própria

e são demasiado grandes e perigosas,

na sua força e complexidade,

para a dimensão que realmente tenho,

neste mundo.

 

Por vezes até parece

que sou apenas, suave,

essa alegre e simples borboleta

que por acaso aí tenha entrado,

esvoaçando entre a percussão e o triturar

desse hipnótico e espantoso

movimento rítmico - e por aí dançando,

em leve e peculiar sintonia

com toda essa infernal maquinaria,

se eleva e suspende com o trinado

do seu errático movimento.

 

Noutros momentos, porém, quase negros

e de uma voragem terrível, é verdade

que sinto ser a própria carne

que é esmagada pelo avanço imparável

dessa intensidade incompreensível -

e é como se no interior desse edifício

se deslocasse um buraco negro,

uma vertigem, ou um vórtice

que fosse a própria aresta do caos.

 

Nestes momentos, confesso

que ainda sinto, súbita,

aquela antiga necessidade de morrer,

e também me questiono, pois,

se até um instrumento musical,

como um piano, protejo da luz do sol

e das diferenças de temperatura,

para que a madeira não estale

e a afinação da cordas não se ressinta,

como conseguirei, afinal, tão frágil

e tão vulnerável, aparentemente,

pelo menos, feita de nervos, de pele,

de ossos, de carne e de sangue,

como conseguirei afinal resistir ou suportar

o excesso desta espécie de violência,

ou então encontrar essa elasticidade,

essa peculiar flexibilidade para me deslocar

entre estes limites, e mesmo assim

permanecer inteira?...

 

A única coisa

que se afigura como certa

é que não poderá ser esta matéria,

esta, precisamente a que tenho,

mas por força maior terei de encontrar

a maneira de me fazer de outra coisa,

de uma outra consistência, ou maleabilidade,

na qual este movimento, ou espécie de violência,

ao invés de destruir, possa fluir.