Foi também quando
era criança,
e bem pequena, com cerca de nove
anos,
que me zanguei com Deus, e deixei
de lhe falar.
Não sei se posso dizer, com toda a
precisão
e justiça, exactamente como foi,
mas lembro-me
que nessa altura passavam na
televisão
as imagens da fome na Etiópia e
sempre apareciam,
desoladas e imóveis, aquelas pobres
crianças
que nem sequer choravam e tinham
nos rostos
os olhos opacos e inexpressivos, e
cobertos de moscas,
e as grandes barrigas, enormes nos
seus pequenos
corpos nus, mal apoiadas nas finas
pernas,
com os ossos dos joelhos salientes,
muito visíveis.
«Mãe, porque é que têm estas
barrigas tão grandes?...»
«Têm muita fome.» - Foi a resposta.
Parecia um contra-senso, e
lembro-me
de sentir na pele uma espécie
particular de absurdo,
porque a mim sobrava-me a comida
e eu, mimada, fazia birras para
comer
e recusava-me, quando não gostava
daquela comida que às vezes me
davam.
«Não podemos enviar-lhes a comida
que nos sobra?...»
«Estraga-se pelo caminho, porque
demora muito tempo a chegar.»
«E porque é que estes meninos
não enxotam as moscas da cara?...»
«Já não têm forças.» - Foi a
resposta.
Mas eu continuei a pensar, sozinha
e calada,
no homem ou na mulher que seguravam
a câmara de filmar, e tinham forças
para o fazer
mas não as tinham, no que dizia
respeito
a enxotar as moscas do rosto e dos
olhos
daquelas pequenas crianças, ali
paradas,
e nesse momento, nesse preciso
momento,
qualquer coisa em mim se quebrou
de uma forma absolutamente radical,
essa antiga confiança, essa alegria
de ser certo, no meu coração,
que havia um Deus de amor
especialmente para nós, crianças,
e ainda hoje penso como é possível
neste mundo imaginar-se que é
possível
maltratar uma criança numa ponta
sem que morra uma criança na outra.