XXXVII


Houve quem perguntasse porquê, tendo sido nós

dotados desta aspiração a uma coisa maior,

desta fome de Deus, deste querer saber mais

do que a razão permite, tendo sido nós

ocupados por esta indagação do sentido

do que possa ser realmente bom, nas nossas vidas,

então porque é que a natureza nos privou

dessa inteira lucidez que seria a visão

de todos esses mundos, e da justiça e da bondade

deste deus a que o coração aspira, mas não alcança.

O mesmo homem tão verdadeiro, tão lúcido,

tão determinado e compassivo, que tal pergunta

enunciou, teve também a coragem de propor uma resposta,

perguntando, então, se continuássemos a ser humanos,

e com uma tal sabedoria, tal, que nem podemos

sequer imaginá-la, então, o que seríamos?

Seríamos de tal forma absolutamente obedientes,

desde o início das nossas vidas, mas não por esperança,

não por dever, não por experiência, não por rendição,

não por amor ao Deus da nossa mais íntima inspiração,

contudo, desconhecido, e aí então seríamos como fantoches,

meros mecanismos de um teatro em que todos nós

gesticularíamos tão perfeitamente bem, mas sem

que vida alguma, nessas perfeitas figuras,

fosse possível vislumbrar. Onde estaria então

esse outro dom, este intocável do inesperado

com que somos lançados neste mundo?...

Por tudo isto, e porque também não é provável que possa

realmente apertar-lhe as mãos nesse mundo dos mortos,

quero deixar aqui estas palavras, aqui,

neste mundo de vivos, como que gravadas

em lápide, porque enquanto as conservar, vivas,

dentro de mim e do meu coração, sei que é

absolutamente impossível que alguma vez volte

a sentir-me assim tão só, tal foi a companhia e a alegria

que senti, quando li que «deste modo, portanto,

também poderá ser exacto o que nos ensina

suficientemente o estudo da natureza e do homem,

isto é: que a sabedoria impenetrável,

por meio da qual existimos, não é menos digna

de veneração por aquilo que nos negou,

do que por aquilo que nos concedeu.»

XXXVI


Havia ainda, nessa grande casa

em que vivíamos, eu e Maria do Mar,

uma outra sala, geminada com a primeira,

em frente do terraço, com essas altas portas

envidraçadas que se abriam sobre os campos.

Chamávamos-lhe «Sala dos Nenúfares»,

por causa dessa curiosa pintura circular

que um certo bisavô, porventura excêntrico,

decidira fazer ao longo das paredes,

ocupando-as na totalidade, de tal forma

que os únicos móveis ali expostos,

no centro da sala, deixando livre tudo em volta,

eram dois velhos sofás e uns cadeirões de pele,

já muito gastos e estragados, e inclinados,

e uma cadeira de baloiço, em palhinha, sobre um tapete,

e nada mais, porque a intensidade dessa pintura

enchia todo o espaço de uma excessiva presença.

Tínhamos o hábito de ler, aí, nessa sala,

rodeadas por esse verde meio opaco

que era o das águas paradas de um lago,

aqui e ali, coberto de nenúfares,

essas flores aquáticas que com suave brancura

delicadamente iluminavam a penumbra,

e era tão bom e tão suave esse contraste entre o verde

das águas e o verde das folhas dos nenúfares

quase em forma de coração, sobre elas poisadas,

e era tão bom esse outro rosa das pequenas flores

que caíam, em cascata, das trepadeiras que se erguiam,

ao longo das paredes, enquanto líamos as duas,

em silêncio, confortavelmente estendidas nos sofás.

Do terraço vinha essa suave luminosidade

que nos libertava, e ao longe, sobre as amuradas,

podíamos ver essas brancas figuras humanas

que alguém esculpira em calcário,

agora incompletas, arruinadas pelos anos

que sucessivamente tinham passado,

sem que houvesse um trabalho de restauro.

Numa faltava uma cabeça, noutra um braço,

noutra ainda uma mão, ou um pé,

mas a delicadeza dos suaves drapejados,

modelando os corpos, não se tinha perdido,

nem se perdera essa silenciosa majestade,

essa comovente dignidade da vida que se ergue,

tão frágil, e tão desafiante, no meio do movimento

da matéria que parece um turbilhão, e nessa altura,

enquanto líamos, essas figuras humanas sobre os muros

do que nos falavam era precisamente desta

estranha e curiosa dupla condição

que é uma linha de tensão que persiste

entre erguer-se e estar arruinado.