XXIX


Estando um dia de manhã

a tomar o pequeno-almoço

à beira de uma janela entreaberta,

entrou por ela uma abelha a zumbir

e por ali ficou, esbarrando e batendo contra o vidro,

atrapalhada. Estava eu a observá-la e a pensar

que não me apetecia enxotá-la

com um pano, no esforço de lhe indicar a saída,

pois lembrava-me das ocasiões anteriores

em que o tinha feito e que estes insectos

parecem sempre voar ao contrário

da direcção em que os enxotamos.

Além disso preocupava-me

pensar que acertasse, por acaso,

nas asas frágeis e transparentes

e que assim diminuísse, sem querer,

uma arte de voar, e pensava nisto,

enquanto observava a abelhinha

a palmilhar o vidro e a recuar,

quando encontrava o caixilho da janela,

e era precisamente depois dele que estava

a pequena fresta por onde podia escapar.

«Curioso.» Pensava eu. «Um pequeno ser vivo

tão habilidoso, que percorre o grande céu

sem se desorientar, poisa nas suas flores

por campos e campos, e regressa à sua casa,

sem se perder, está aqui encurralado,

na simples transparência de um vidro.»

Ao mesmo tempo deixava-me apreensiva

a ideia de que essa abelhinha

pudesse voar para dentro do boião do doce

mas não me apetecia entrar nessa luta

imprevisível de a enxotar, e dei por mim a pensar,

distraidamente, e quase inadvertidamente:

«É só uma criatura tua, Deus. Se tu quiseres,

ela encontra a saída num ápice.»

E nesse preciso momento, no momento exacto

em que se acabou dentro de mim este pensamento,

a abelhinha abandonou aquele movimento

obsessivo e insistente, contra o vidro,

fez uma elipse perfeita e saiu pela fresta,

com uma volta elegante.

«Caramba!...» Pensei eu.

«Não era preciso ser tão rápido!...»

E dei por mim com uma sensação estranha,

mas agradável, e muito leve,

pois de repente sentia como se Deus,

de repente, brincasse comigo,

e me estivesse a dizer: «Estás a ver,

criatura infantil, até que ponto existo?»

E é claro que Deus não conversava

nem me dizia nada, mas eu sentia nitidamente

que alguma coisa me estava a ser dita,

e nem sequer me passou pela cabeça

que este ínfimo acontecimento

se tratasse de uma coincidência,

e se eu pudesse falar com Deus,

nesse preciso momento, dirigindo-me a ele,

lançando-lhe um olhar pelo canto do olho, dir-lhe-ia:

«Divertes-te, hem?...» Porque é precisamente

isso o que sinto, mais do que penso,

quando observo certos animais, certas criaturas,

e certos aspectos particulares da natureza,

deste mundo em que a nossa vida acontece.

Uma zebra, por exemplo, ou os peixes

às riscas coloridas que andam pelo fundo do mar.

O excêntrico camaleão de olhos espetados,

com a ponta da fina cauda encaracolada, os cães,

quando levantam as orelhas, e certos bichos

que têm corpos surpreendidos e assarapantados.

A avestruz pestanuda e a altiva girafa,

de olhos meio trôpegos e sedutores,

o urso polar, o panda, o coala e o cangurú,

quem pode negar que há neles

qualquer coisa de cómico,

uma espécie de riso?...

Mas não só nos animais, mas nas plantas,

nas flores, nos legumes, nos fungos,

e até nas pedras, há uma espécie de divertimento,

uma maneira peculiar de brincar.

Imagine-se uma alcachofra, um ananás,

a flor do hibisco, ou certas espécies de cogumelos,

com as suas bolinhas brancas, contra um fundo vermelho.

E eu pensava, sem poder impedir-me: «É verdade, Deus,

é bem verdade que às vezes ainda sou essa criança

que não sabe como crescer, não sabe como envelhecer,

não sabe às vezes como viver e muito menos como morrer.

Ris-te de mim, não é?... 

Ris-te com essa espécie particular de carinho

porque sabes que me bato contra limites

mas o que é certo é que uma parte

do que ainda tenho de aprender

será conseguir levar-me tão a sério

e precisamente nessa medida

em que a vida a si mesma se leva.»