XXIII


Porque há uma coisa em mim

que sabe exactamente

o que é ser pássaro

e voar, e voa com ele

quando o vê, tão livre

e tão leve, no azul brilhante

do céu que os dois envolve.

Ele flui com as asas abertas

em linhas invisíveis

de tensão e suspensão

e qualquer coisa em mim

sabe exactamente,

sem saber como,

o que é ganhar balanço

nesse rápido bater de asas,

nesse vivo impulso,

e depois deixar-se fluir

numa linha contínua,

que é por si própria,

na sua leveza absoluta,

uma espécie de infinito,

talvez uma inclassificável

participação de outra esfera,

como qualquer coisa

que está à beira de outra,

uma praia, ou uma franja,

voando no vento,

e a verdade, a verdade

é que essa coisa em mim

sabe perfeitamente e sem

qualquer espécie de dúvida

a precisa e peculiar diferença

que existe entre a intensidade

do batimento rítmico

com que o pássaro

se eleva nos ares,

em súbito esforço,

e essa tensão suave,

esse contínuo sensual

e diria: realmente infinito -

que é estar suspensa

numa linha de absoluta fluição.

Em sonhos verdadeiros,

enquanto durmo, no meu sono

também já aconteceu

que as pontas dos meus pés

se separassem

do chão e eu também

voei e sei o que isso é,

sem saber como

nem porquê.

XXII


Que bom seria se pudesse dizer, da minha alma,

que a sua conduta fosse irrepreensível,

como se agora mesmo ela nascera,

e livre pudesse então partir, imaculada,

nesse luminoso cortejo dos bem aventurados,

que em redor das estrelas, como descreve Platão,

viajam felizes para o topo do céu,

essa cristalina morada onde se diz que as cores

são mais brilhantes e variadas, mas confesso:

não consigo sequer pensar

que seja verdade que nós humanos

estejamos para esse mundo impensável

como os peixes quando põem a cabeça fora de água,

e olham para a terra maravilhosa que nós pisamos,

lamentando esse mar cheio de sal e saibro

que é o abismo de toda a escuridão.

E mesmo que voltasse a esta vida

carregada com um novo e inesperado

quinhão de dor, mesmo assim desejaria,

ainda assim, fazer parte deste esplendor,

porque ser uma pessoa, abrir os olhos e ver

tantas maravilhas e luminosas, irisadas cores,

o céu muito azul e uniforme, ao mesmo tempo liso e fundo,

como um ecrã rasgado no infinito,

e o verde puro e transparente

que explode em todo o lado, brilhante e variado,

porque ser uma pessoa, ter corpo e concentração,

poder sentir e pensar, e ter dois olhos

que captam a luz, ouvidos, boca, mãos e coração,

e girar em volta e ver, erguida sobre os pés,

disso também se pode dizer, é verdade,

que seja a bem-aventurança.

E por isso quereria sempre chegar aqui

e participar, fazer qualquer coisa, nem sei bem o quê,

talvez cultivar um jardim, talvez erguer uma casa,

tocar ou dançar, sem ninguém a olhar,

debaixo de uma árvore, não sei,

pois teria de me inspirar, e de me abandonar,

pôr-me no meu caminho e deixar-me fluir

para conseguir essa proeza

de poder realizar qualquer coisa de bom

e assim conseguir ficar

em harmonia com o resto.

XXI


Tal como Jonas, esse Profeta

que, quando ouviu a voz do Senhor,

aterrado, fugiu  e acabou

dentro de uma baleia,

se alguma vez tu, Deus,

tivesses falado comigo

e nesse momento a tua voz

se ouvisse com toda a clareza,

nesse momento é possível

que tivesse enlouquecido

de uma forma muito grave,

pelo menos durante alguns dias.

No meu caso, porém,

se Deus me falasse

uma segunda e terceira vez,

o mais certo seria

perder para sempre o juízo,

mas Jonas ficou dentro do peixe

como se estivesse num sepulcro,

mergulhado na escuridão,

com algas enroladas na cabeça,

durante três dias e três noites,

angustiado e a rezar.

Por isso, a história diz

que Deus fez com que o peixe

fosse vomitar Jonas

em terreno bem firme

e que tornou a falar-lhe,

dizendo: «Anda!»

E dessa vez Jonas

ouviu e obedeceu,

partindo a pé para anunciar

a destruição de Nínive.

Porém os habitantes da cidade,

quando ouviram a mensagem de Jonas,

os habitantes de Nínive

arrependeram-se tanto,

que Deus decidiu não os castigar

como antes tinha pensado,

e Jonas partiu para o deserto

à espera de morrer,

revoltado contra um Deus

que mudava de ideias

conforme

os sentimentos dos homens.

Deus então

fez crescer uma planta

ao lado de Jonas,

para lhe dar sombra

e confortar no seu desgosto,

mas Jonas, porém,

não percebeu

o que Deus lhe queria dizer

e por isso, na manhã seguinte,

Deus fez com que um bicho

fosse roer a planta

e então ela secou.

Jonas dizia, muito zangado:

«É melhor para mim morrer

do que viver assim!...»

Mas Deus respondeu a Jonas:

«Achas que tens razão

para te irritares assim

por causa de uma simples planta?...»

Mesmo uma planta

não sendo uma cidade,

Jonas respondeu:

«Acho que tenho razão

e estou profundamente irritado.»

Por isso, Deus pôde explicar-lhe,

que se Jonas tinha compaixão

pela vida de uma simples planta,

mais compaixão teria Deus

pelos milhares de vidas da cidade.

Jonas teve assim

oportunidade de compreender

aquilo que o seu espírito

de outra forma

não alcançaria.

No entanto,

por causa desta história,

e porque nem todos

temos o espírito e a força

de um profeta,

penso muitas vezes

que é preferível que Deus

de forma alguma nos fale,

ou então pareça apenas

que nos fale indirectamente,

através de acontecimentos e sinais

e sem nenhum tipo de explicação. 

XX


Porque chegou um dado momento

em que o meu corpo

e a minha cabeça

eram como um jardim

ao qual tivesse lançado fogo.

Já não suportava andar por ali,

por esses sinuosos caminhos

que compulsivamente repetia,

em infernos circulares e regulares,

sem saber já o que fazer,

sem uma proposta de alteração.

Isso poderia até ser interessante,

mas certas dores, em particular,

fizeram com que pegasse fogo a tudo,

um gesto curiosamente insano, mas,

ainda assim, paradoxalmente pacífico.

Enquanto tudo ardia,

nesse suave desastre,

simplesmente dormia, não sei,

ou talvez desmaiasse, não sei,

pois não sentia, e era como se apagasse

um estranho vigilante interior

e então dormisse de olhos abertos,

petrificada, diante da própria sombra

opaca, majestosa, intocável,

mas não sei, realmente não sei,

pois a verdade é que inconsciente caía,

e pensava que dormia,

mas adormecia

tão de repente que caía

e era como se o corpo caísse

a pique dentro do próprio corpo,

e a difícil consciência, felizmente,

finalmente, hedonisticamente anulada.

Por breves momentos, o que conseguia,

antes de me apagar, e sem qualquer espécie

de reflexão, era sobrevoar-me dentro do corpo,

como se fosse um sopro atravessando

em alta velocidade uma planície,

ou como se este corpo fosse um plano

tão livre e desimpedido que podia fluir

através dele como linha de luz,

um traço contínuo sem qualquer

forma ou espécie de interrupção,

uma pura linha de luz que viajasse,

translúcida e constante, pelo vazio,

e em troca da breve intensidade

dessa específica forma de prazer,

em troca desse calor, desse abandono,

em troca dessa libertação,

chegava a pensar, é verdade,

que talvez não fosse importante,

sequer, arriscar por acidente morrer.

Ainda hoje não compreendo o milagre

que veio erguer-me sobre os dois pés

nessa paisagem carbonizada, desolada,

nem que estranha compaixão, tão diversa,

terá descido em mim, por mim, dentro de mim,

e despertado no fundo de mim,

compassivamente,

uma estranha lucidez

que então me lavava os olhos.

Não compreendo o movimento

que então me acompanhou

pelos escombros dessas ruínas,

nem a força, nem a coragem,

nem sequer essa humana capacidade de união

de tantos companheiros de infortúnio.

Continuo incapaz de compreender

como é que de tantas cinzas

a natureza renasce, nem essa força subterrânea

com que a vida explode à superfície, surpreendente,

e é com espanto que vejo, atónita e perplexa,

sentindo-me muito alegre e pequenina,

vagamente incrédula, mas cheia de esperança,

estas novas flores desconhecidas,

estes bocadinhos de verde luminoso,

a despontar timidamente no deserto...

... que alegria!...

XIX

 

Foi preciso que a morte me tocasse
 
 
para que então começasse a aprender,
 
 
por um estranho amor a esta vida,
 
 
um pouco do significado
 
 
do sentimento de humildade.
 
 
Foi preciso descer muito fundo
 
 
nesse plano gelado do desespero,
 
 
nessa solidão insondável,
 
 
para que pudesse retirar
 
 
desta existência
 
 
alguma espécie de evidência.
 
 
Foi preciso ficar arrasada
 
 
durante muitas, muitas horas,
 
 
e pela tua compaixão,
 
 
que não me deixaste morrer,
 
 
regressar dolorosamente à luz,
 
 
para perceber que a maior dor
 
 
é lutar contra ti
 
 
e não deixar a vida fluir.
 
 
E foi preciso que isto se repetisse
 
 
muitas, muitas vezes,
 
 
para conseguir perceber
 
 
que sozinha não era nada
 
 
e que só contigo,
 
 
contigo, por ti e em ti,
 
 
podia viver.


XVIII


É verdade que passei muito tempo,

muitas horas, muitos dias, Deus,

a pensar em ti e a negar-te,

não só porque não conseguia pensar-te,

mas também quando reflectia neste mundo

e na dor absurda, incompreensível,

que de um golpe derruba tantos seres inocentes,

hordas de gente absurda, despida ou endomingada,

mortos-vivos que às cegas caminham no esplendor,

estranha raça de humanos, com seus destroços e tiranos,

suas correntes absurdas de vaidades e abjecções,

e sem perceber, é verdade, sem perceber, nem sequer reparava

que assim agia, insana, como alguém que pensasse

que um tão pobre juízo moral, simplesmente humano,

e tão pequeno, dentro dos seus limites

pudesse julgar semelhante grandeza, tu, poder infinito

de quem estaria mais certo dizer-se, ainda

que teoricamente possa estar tudo errado,

como naquele salmo de David,

que assentaste a terra em colunas bem firmes,

para que ela se mantivesse segura, e que a cobriste

com o mar profundo, tapando as montanhas,

e que enviaste a água pura das nascentes,

para os rios brilhantes que correm nos vales,

essa água de que bebem os homens e os animais,

e em que matam a sede os veados dos montes,

e em cujas margens fazem ninho as aves do céu,

chilreando, no meio da folhagem, muito leves.

 

Porque, se nem mesmo de uma banal trave de aço,

que hoje sabemos formada por minúsculos e invisíveis

corpos em movimento, que giram em torno uns dos outros

numa velocidade incrível e segundo leis precisas,

se nem mesmo desta coisa simples podemos afirmar

com completa segurança que a conhecemos,

quanto mais deste universo que a luz estelar atravessa,

veloz, poderei eu imaginar a dimensão, o sentido,

o princípio e o fim, e quanto mais ainda quanto à justiça

do destino invisível que sofre a vida e o corpo

de tantos seres vivos que persistem, como a poderei julgar?

Se parar para reflectir na dimensão desta terra imensa

que em torno do sol incandescente gira, bem rápida,

sem que tudo o que está nela se desequilibre ou caia no espaço,

no meio de tantas galáxias, muito brancas e brilhantes,

que entre si se entrelaçam, girando, com suas estrelas,

também morrendo e nascendo, como seres vivos,

arremessando e devorando os planetas,

se reflectir na dimensão desta terra multicolor,

que no meio das infinitas nebulosas não chega sequer

a ser um ínfimo grão de pó, sendo para mim incompleta,

e impossível de conhecer, como poderei então continuar

a querer pensar que em tudo isto não te encontras tu,

força impensável e poderosa, sem a qual esta vida

simplesmente provém do nada, nada significa,

nada justifica e a nada conduz?