E nessa altura, também pensava:
«Se a minha fé fosse a de um santo,
jamais seria infeliz.
Aceitaria tudo como sendo bom, um
passo antes de outro passo,
degrau antes de degrau, passagem
absolutamente necessária.
Aceitaria a totalidade invisível do
mundo e da vida
como a perfeição de uma visão
última que não a minha,
o destino justificado de um sentido
para mim inalcançável,
e então aceitaria a própria dor
como a natureza incontornável de um limite,
o limite humano de um parco poder
de observação,
de uma demasiado estreita compreensão,
Deus.»
E pensava: «Quando é que terei essa
resignação, essa serenidade?...
Não é verdade que também Cristo
gritou na cruz, no meio do sofrimento:
“Pai!... Porque me abandonaste?...”
Se a minha fé fosse sempre a que
tivesse
quando tenho a emoção de ver um
malmequer
e penso que tu, meu deus, é que o formaste,
um malmequer ou um bebé ou qualquer
coisa viva
que, de tão bela, o coração não a
suporta,
mas desfaz-se, apaixonado, na
emoção de a amar,
então não seria nunca infeliz.
Mas Pedro também se afundava nas
águas,
diante de Cristo, que caminhava
sobre as águas,
e ele via, e eu não vi,
e então, como posso eu,
não vacilar?
Se é verdade que te encarnaste, Deus,
então conheces esta fraqueza, pois,
como caminharemos altivos em
direcção à dor?
Se tu fosses uma perfeita
evidência!...
Ah!... Então que maravilha!...
Por vezes é verdade que avançamos
tão trôpegos como bêbados,
ou nem sequer avançamos, é verdade,
cambaleamos, ou então recuamos,
ou então caímos, tanto é o nosso
medo,
mas vê bem, vê bem, nós surgimos
em puras crianças e inocentes
nascemos crianças,
nascemos tão leves e felizes e
nessa altura
os nossos rostos são lisos e
alegres,
mas num instante nos perdemos, e de
dor em dor,
de perda em perda também outra e
outra vez nos perdemos,
e por isso, por isso esta fala é um
gaguejar,
o desejo de uma visão que me
falasse de tudo o que não sei,
e que nessa altura caminhasse na
pura beleza imaculada
que vejo quando vejo este mundo em
pura cor,
sem que pense nele e sem que viva
nele
a dor da desilusão. Se nos desses
apenas aquilo que vemos
quando a beleza nos ultrapassa, e
ninguém nos julgasse,
porque tudo o resto, tudo o resto
é extremamente difícil de pensar e
a nossa humanidade
não se compadece desse desastre,
então, meu Deus,
então nesse momento talvez
uma estranha felicidade me
coroasse.»
E era isto o que pensava, nessa
altura.