E porque não tinha outro nome e
tudo o que sabia de ti
era o mundo que aparecia e diante
de cuja beleza deslizava,
embora permanecesse de pé,
chamava-te deus e dizia essa palavra
como se fosse dita pela primeira
vez.
Não sabia se estava contigo, nem
sabia se estava em ti,
e muito menos sabia se estava
diante de ti,
não se tratava de um estado, muito
menos de um facto,
meu Deus, agora, trata-se de uma
ligação.
E dizia deus incompreensível,
dizia deus desejado,
dizia: Deus, que fazes do
meu pensamento um ser alado,
tu, o mais alto objecto do meu
desejo, dizia-te imperfeitamente
porque precisava de te chamar,
precisava de te falar,
porque não podia fazê-lo de outro
modo e porque
até quando via a minúscula
joaninha, vermelha e simétrica,
levemente metalizada, tão elegante
e perfeita na sua cor sarapintada,
até mesmo
nesse momento não conseguia impedir-me de espontaneamente pensar
no poder que a tinha formado, e no
poder que a sustinha, intacta,
no meio deste turbilhão insólito
que parece ser o movimento da matéria,
e sentia com toda a clareza que
estava diante ti, embora não pudesse explicá-lo,
nem pudesse sequer pensá-lo, é
certo, mas não conseguia deixar de imaginar
que eras o vórtice da força
abstracta a partir do qual as nebulosas se equilibram,
ponto cristalino, linha de
velocidade e toda a vida impensável,
embora
testemunhável, esse plano inenarrável onde espantosamente
os seres
persistem, estranha matéria inclassificável diante da qual
toda e
qualquer análise se paralisa, ou então talvez o próprio vazio que gira
no interior do átomo, esse
infindável vazio no qual estrelas e planetas
deslizam
fixamente e em que os homens se erguem, fora do meu pensamento, sim,
mas dentro da emoção que sinto
quando vejo um malmequer,
ou uma luz, uma inclinação, certas
cores que brilham na noite transparente,
uma criança.
E embora o meu coração e a cabeça,
é verdade, parecessem dois titãs
que se esmagavam entre si,
alternadamente, o certo é que também eu,
tal como tu, me escapava do meu
coração, como da minha cabeça,
pois não era coração, nem cabeça,
nem estômago, nem pernas,
nem pés, nem mãos, nem sequer
vísceras terríveis, invisíveis,
nesse conflito era quase pedra e
pó, essa poeira leve e turva dos caminhos
com a qual parece que me fizeste,
era até a mãe daquela outra criança
e as linhas das colinas que
verdadeiramente ondulam, como o mar,
(porque por elas passava), e até o
criminoso que fugiu e o mártir
que se
entregou, e também era o ladrão que procurava esconder o rosto,
(sim, por
medo, mais que por vergonha, é certo), e até essa mulher exilada
que caminhava,
cheia de fome, carregada de água, entre uma multidão
que fugia de
uma guerra que não lhe pertencia, e que até ao fim,
erguida nos
pés, caminhou, até cair, e essa criança que fizeram explodir
em nome de uma
loucura a que chamaram fé, mas ela nem sentiu,
pois era até
um único pé, e tudo o que fosse tão diferente, tão díspar,
esse único pé que por acaso ficou
da escultura grega em ruínas,
e lá está, esse pé - ó riso, ó dor
inextinguível!… Astronauta que via a terra
como um
berlinde, pois de tão longe parecia que era o carreiro de mil formigas
e as nuvens que se desvaneciam,
dourado escaravelho,
libélula irisada, verde gafanhoto e
brônzeo louva-a-deus,
e nesse momento também era aquele
ser totalmente à parte,
e de toda a parte, tão
absolutamente que já nem faz sentido
dizer que já não é ou que nem nunca
chegou a ser,
miríade de tão brilhantes
partículas que na fronteira dos corpos
simplesmente se confundem, como
névoa ou fumo fugaz,
espécie de velocidade ou movimento,
não sei,
pura possibilidade, linha de fuga
em que a vida não foge,
mas de um golpe se afirma, no
centro da surpresa,
como fogo entre estrépito de mil
faúlhas,
miríades de pontos ofuscantes com
sua geometria impossível de fixar,
puro acontecimento, ou melhor,
efemeridade.