Porque nessa altura,
nesses dias em que me perdia
insensivelmente e sem aviso,
nessa espécie de loucura,
nesses dias então
de surdo terror e desespero,
sozinha, experimentei rezar,
mas então não me ocorreu,
nem achei que fosse justo,
pedir qualquer coisa
para mim, sendo apenas eu
uma coisa entre as infinitas coisas
deste mundo. Nessa altura,
era como um náufrago
que estando sozinho numa ilha
começa a esculpir rostos
na casca das árvores
com uma pedra
para se manter lúcido
no meio da dor.
E todos os dias, nesses dias,
embora estivesse tão perdida
como alguém que caminhasse
num deserto, sem ver
o fim das dunas ondulantes,
mesmo assim me colocava
diante de ti, sob o que imaginava,
sem conseguir imaginar,
ser o teu testemunho.
Não sabia o que fazer,
mas todos os dias me levantava
do sítio onde tinha caído,
e estava diante de ti.
Falava contigo, de mãos unidas,
e não sei porquê, não sei,
não sei porquê,
entrelaçava os dedos
e todos os dias
me dirigia a ti,
mas não te pedia
absolutamente nada
como se fosse impensável
que tu me pudesses ouvir.
Às vezes era como
uma sonâmbula,
como um autómato,
apagava-me, mas continuava
em estranho movimento,
e mesmo assim,
no outro dia, quando acordava,
estava de novo diante de ti.
Penteava os meus cabelos
depois de lavar o rosto
e vestia as minhas roupas
e olhava-me no espelho,
estranhando estar inteira,
e nessa altura,
como esses cabelos
caíam às mãos cheias
e mesmo assim parecia
que os despenteavas com arte,
da mesma maneira,
e com a mesma arte,
com que despenteias
árvores e campos,
então quando olhava
para a minha cabeça
comecei a pensar,
hesitante: «És tu?...
És tu quem penteia
os meus cabelos?...»
e ao de leve,
começava a pensar:
«Se penteias
as searas
e dispersas o pó
que anda no ar,
porque não hás-de
tocar em mim
e nos meus cabelos?...»
Mas não sabia como continuar
a pensar nisso nem como
semelhante coisa pudesse
corresponder à verdade.
Agradecia-te ver as cores,
de pé, pois não imaginava,
de joelhos, dirigir-me a ti,
não sabia porquê,
mas não fazia sentido,
também isso me ensinaram,
tal como as mãos, mas o orgulho
e o desafio com que existia
não se compadeciam
dessa resignação.
Simplesmente de manhã
experimentava rezar de mãos
unidas,
porque de manhã,
quando me dirigia a ti,
era um simples ser humano
que só desejava
invocar a tua protecção
do fundo da sua fé
e da sua fragilidade,
assim como da consciência dela,
e não sei porquê, unia as duas mãos
como se fossem uma,
e não sei porquê,
mas era isso que fazia
quando começava o novo dia.