Havia ainda, nessa grande casa
em que vivíamos, eu e Maria do Mar,
uma outra sala, geminada com a
primeira,
em frente do terraço, com essas
altas portas
envidraçadas que se abriam sobre os
campos.
Chamávamos-lhe «Sala dos
Nenúfares»,
por causa dessa curiosa pintura
circular
que um certo bisavô, porventura
excêntrico,
decidira fazer ao longo das
paredes,
ocupando-as na totalidade, de tal
forma
que os únicos móveis ali expostos,
no centro da sala, deixando livre
tudo em volta,
eram dois velhos sofás e uns
cadeirões de pele,
já muito gastos e estragados, e
inclinados,
e uma cadeira de baloiço, em
palhinha, sobre um tapete,
e nada mais, porque a intensidade
dessa pintura
enchia todo o espaço de uma
excessiva presença.
Tínhamos o hábito de ler, aí, nessa
sala,
rodeadas por esse verde meio opaco
que era o das águas paradas de um
lago,
aqui e ali, coberto de nenúfares,
essas flores aquáticas que com
suave brancura
delicadamente iluminavam a
penumbra,
e era tão bom e tão suave esse
contraste entre o verde
das águas e o verde das folhas dos
nenúfares
quase em forma de coração, sobre
elas poisadas,
e era tão bom esse outro rosa das
pequenas flores
que caíam, em cascata, das
trepadeiras que se erguiam,
ao longo das paredes, enquanto
líamos as duas,
em silêncio, confortavelmente
estendidas nos sofás.
Do terraço vinha essa suave luminosidade
que nos libertava, e ao longe,
sobre as amuradas,
podíamos ver essas brancas figuras
humanas
que alguém esculpira em calcário,
agora incompletas, arruinadas pelos
anos
que sucessivamente tinham passado,
sem que houvesse um trabalho de
restauro.
Numa faltava uma cabeça, noutra um
braço,
noutra ainda uma mão, ou um pé,
mas a delicadeza dos suaves
drapejados,
modelando os corpos, não se tinha
perdido,
nem se perdera essa silenciosa
majestade,
essa comovente dignidade da vida
que se ergue,
tão frágil, e tão desafiante, no
meio do movimento
da matéria que parece um turbilhão,
e nessa altura,
enquanto líamos, essas figuras
humanas sobre os muros
do que nos falavam era precisamente
desta
estranha e curiosa dupla condição
que é uma linha de tensão que persiste
entre erguer-se e estar arruinado.