XX


Porque chegou um dado momento

em que o meu corpo

e a minha cabeça

eram como um jardim

ao qual tivesse lançado fogo.

Já não suportava andar por ali,

por esses sinuosos caminhos

que compulsivamente repetia,

em infernos circulares e regulares,

sem saber já o que fazer,

sem uma proposta de alteração.

Isso poderia até ser interessante,

mas certas dores, em particular,

fizeram com que pegasse fogo a tudo,

um gesto curiosamente insano, mas,

ainda assim, paradoxalmente pacífico.

Enquanto tudo ardia,

nesse suave desastre,

simplesmente dormia, não sei,

ou talvez desmaiasse, não sei,

pois não sentia, e era como se apagasse

um estranho vigilante interior

e então dormisse de olhos abertos,

petrificada, diante da própria sombra

opaca, majestosa, intocável,

mas não sei, realmente não sei,

pois a verdade é que inconsciente caía,

e pensava que dormia,

mas adormecia

tão de repente que caía

e era como se o corpo caísse

a pique dentro do próprio corpo,

e a difícil consciência, felizmente,

finalmente, hedonisticamente anulada.

Por breves momentos, o que conseguia,

antes de me apagar, e sem qualquer espécie

de reflexão, era sobrevoar-me dentro do corpo,

como se fosse um sopro atravessando

em alta velocidade uma planície,

ou como se este corpo fosse um plano

tão livre e desimpedido que podia fluir

através dele como linha de luz,

um traço contínuo sem qualquer

forma ou espécie de interrupção,

uma pura linha de luz que viajasse,

translúcida e constante, pelo vazio,

e em troca da breve intensidade

dessa específica forma de prazer,

em troca desse calor, desse abandono,

em troca dessa libertação,

chegava a pensar, é verdade,

que talvez não fosse importante,

sequer, arriscar por acidente morrer.

Ainda hoje não compreendo o milagre

que veio erguer-me sobre os dois pés

nessa paisagem carbonizada, desolada,

nem que estranha compaixão, tão diversa,

terá descido em mim, por mim, dentro de mim,

e despertado no fundo de mim,

compassivamente,

uma estranha lucidez

que então me lavava os olhos.

Não compreendo o movimento

que então me acompanhou

pelos escombros dessas ruínas,

nem a força, nem a coragem,

nem sequer essa humana capacidade de união

de tantos companheiros de infortúnio.

Continuo incapaz de compreender

como é que de tantas cinzas

a natureza renasce, nem essa força subterrânea

com que a vida explode à superfície, surpreendente,

e é com espanto que vejo, atónita e perplexa,

sentindo-me muito alegre e pequenina,

vagamente incrédula, mas cheia de esperança,

estas novas flores desconhecidas,

estes bocadinhos de verde luminoso,

a despontar timidamente no deserto...

... que alegria!...