Porque chegou um dado momento
em que o meu corpo
e a minha cabeça
eram como um jardim
ao qual tivesse lançado fogo.
Já não suportava andar por ali,
por esses sinuosos caminhos
que compulsivamente repetia,
em infernos circulares e regulares,
sem saber já o que fazer,
sem uma proposta de alteração.
Isso poderia até ser interessante,
mas certas dores, em particular,
fizeram com que pegasse fogo a
tudo,
um gesto curiosamente insano, mas,
ainda assim, paradoxalmente
pacífico.
Enquanto tudo ardia,
nesse suave desastre,
simplesmente dormia, não sei,
ou talvez desmaiasse, não sei,
pois não sentia, e era como se
apagasse
um estranho vigilante interior
e então dormisse de olhos abertos,
petrificada, diante da própria
sombra
opaca, majestosa,
intocável,
mas não sei, realmente não sei,
pois a verdade é que inconsciente
caía,
e pensava que dormia,
mas adormecia
tão de repente que caía
e era como se o corpo caísse
a pique dentro do próprio corpo,
e a difícil consciência,
felizmente,
finalmente, hedonisticamente
anulada.
Por breves momentos, o que
conseguia,
antes de me apagar, e sem qualquer
espécie
de reflexão, era sobrevoar-me
dentro do corpo,
como se fosse um sopro atravessando
em alta velocidade uma planície,
ou como se este corpo fosse um
plano
tão livre e desimpedido que podia
fluir
através dele como linha de luz,
um traço contínuo sem qualquer
forma ou espécie de interrupção,
uma pura linha de luz que viajasse,
translúcida e constante, pelo
vazio,
e em troca da breve intensidade
dessa específica forma de prazer,
em troca desse calor, desse
abandono,
em troca dessa libertação,
chegava a pensar, é verdade,
que talvez não fosse importante,
sequer, arriscar por acidente
morrer.
Ainda hoje não compreendo o milagre
que veio erguer-me sobre os dois
pés
nessa paisagem carbonizada,
desolada,
nem que estranha compaixão, tão
diversa,
terá descido em mim, por mim,
dentro de mim,
e despertado no fundo de mim,
compassivamente,
uma estranha lucidez
que então me lavava os olhos.
Não compreendo o movimento
que então me acompanhou
pelos escombros dessas ruínas,
nem a força, nem a coragem,
nem sequer essa humana capacidade
de união
de tantos companheiros de
infortúnio.
Continuo incapaz de compreender
como é que de tantas cinzas
a natureza renasce, nem essa força
subterrânea
com que a vida explode à
superfície, surpreendente,
e é com espanto que vejo, atónita
e perplexa,
sentindo-me muito alegre e
pequenina,
vagamente incrédula, mas cheia de
esperança,
estas novas flores desconhecidas,
estes bocadinhos de verde luminoso,
a despontar timidamente no
deserto...
... que alegria!...