Vejam, porque vos digo, assim,
desta maneira:
«Em cima da pequena escrivaninha em
laca negra,
com seus suaves embutidos de
madrepérola,
delicadamente desenhando o encontro
de dois pássaros amorosos,
enamorados,
repousa imóvel uma jarra azul em cloisonné
pontuando discreta com sua perfeita
quietude
a harmonia da sala e, no interior
da casa,
a silenciosa sinfonia dos objectos.
Dois quadros que um avô
desconhecido disse
serem de Toulouse-Lautrec, comprados
a um judeu em fuga, vindo de Paris,
durante a Segunda Guerra Mundial,
esses dois quadros pendurados
sobre a pequena escrivaninha,
digo-vos,
são de cavalos, e num deles a
estranha sombra
de um homem, com dois chicotes, um
em cada mão,
laçarote e fraque, no centro de um
circo,
a estranha sombra do homem também é
cavalo,
sombra impossível, acontecimento
inenarrável
do homem a tornar-se cavalo no
quadro
que é cavalo, como se já não
houvesse,
entre mim e mim, ou entre mim e
ele, esse intervalo.
Olhando para os quadros penso
vagamente
em coisas que não têm nada a ver.
Laranjas, morangos, cerejas,
uma garrafa de leite e um pedaço de
pão,
manteiga, foie gras e um
resto de pesto italiano,
essas coisas que sobraram da última
refeição.»
E digo-vos: «Vejam, vocês que me
ouvem, é certo
que sobre o tampo aberto da pequena
escrivaninha
tenho pousados os dois braços,
imóveis as duas mãos
e é verdade, é verdade que o
silêncio da casa canta
enquanto no outro quarto alguém
dorme, respirando na penumbra,
e lá fora, sob a radiante luz do
dia,
explodem as hortênsias em rosa e
azul,
em filas, logo a seguir ao terraço,
e por tudo isso muito quieta eu
peço,
de antemão conhecendo a desilusão
desse desejo,
que o tempo se imobilize.»