III


Vejam, porque vos digo, assim, desta maneira:

«Em cima da pequena escrivaninha em laca negra,

com seus suaves embutidos de madrepérola,

delicadamente desenhando o encontro

de dois pássaros amorosos, enamorados,

repousa imóvel uma jarra azul em cloisonné

pontuando discreta com sua perfeita quietude

a harmonia da sala e, no interior da casa,

a silenciosa sinfonia dos objectos.

Dois quadros que um avô desconhecido disse

serem de Toulouse-Lautrec, comprados

a um judeu em fuga, vindo de Paris,

durante a Segunda Guerra Mundial,

esses dois quadros pendurados

sobre a pequena escrivaninha, digo-vos,

são de cavalos, e num deles a estranha sombra

de um homem, com dois chicotes, um em cada mão,

laçarote e fraque, no centro de um circo,

a estranha sombra do homem também é cavalo,

sombra impossível, acontecimento inenarrável

do homem a tornar-se cavalo no quadro

que é cavalo, como se já não houvesse,

entre mim e mim, ou entre mim e ele, esse intervalo.

Olhando para os quadros penso vagamente

em coisas que não têm nada a ver.

Laranjas, morangos, cerejas,

uma garrafa de leite e um pedaço de pão,

manteiga, foie gras e um resto de pesto italiano,

essas coisas que sobraram da última refeição.»

E digo-vos: «Vejam, vocês que me ouvem, é certo

que sobre o tampo aberto da pequena escrivaninha

tenho pousados os dois braços, imóveis as duas mãos

e é verdade, é verdade que o silêncio da casa canta

enquanto no outro quarto alguém dorme, respirando na penumbra,

e lá fora, sob a radiante luz do dia,

explodem as hortênsias em rosa e azul,

em filas, logo a seguir ao terraço,

e por tudo isso muito quieta eu peço,

de antemão conhecendo a desilusão desse desejo,

que o tempo se imobilize.»