VIII


Habitando a casa, num outro quarto,

sobre o móvel alto de charão, com suas figurinhas

orientais em relevo, feitas de jade, marfim e madrepérola,

sobre esse móvel ergue-se a figura de Maria,

Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal,

com seus cabelos dispersos sobre as costas,

escultura que em tempos pertenceu à bisavó M.

e de quem se diz que um dia terá caído e que se terá partido,

mas que alguém recuperou e agora já não é possível ver

com perfeita clareza exactamente onde se partiu.

Esta Maria de rosto compassivo e vestes brancas

e azuis, de pés escondidos pelo manto que cai

e pela nuvem de onde emergem, suaves,

três rostos infantis que são anjos, diante dela

arde por vezes uma minúscula vela, pois trata-se

de um procedimento antigo, talvez um gesto

inexplicável contra o medo, porque a luz

da pequena chama que arde é tão tranquila

e tão suave que perto dela uma espécie de companhia

parece que acontece, tornando o sono menos inseguro.

Também as figurinhas orientais com rostos de marfim

e vestes de jade e madrepérola, dispostas ao longo das gavetas

como em pranchas de banda desenhada,

também elas parece que contam uma história,

pois há aí uma criança que cai no chão, senhoras

que se abanam com um leque e um homem que escreve,

debruçado sobre a mesa onde se estende um texto chinês.

Por tudo isto é preciso falar destas insólitas companhias,

porque na imensa casa semi desabitada, casa isolada

no meio de campos e campos, casa com mais de cem portas

 e oitenta janelas e seus quartos abandonados

onde já ninguém entra, suas alas arruinadas,

sem telhado, ou onde o chão desabou,

nesta casa quando desce a noite a imensa solidão

já não se pode ignorar e os poucos quartos habitados

são como ilhas, barcos vulneráveis que se iluminam,

ou frágeis balões que pairam no abismo,

sobre a escuridão infinita, que sobre nós desce,

porque as nossas salas são grandes mas dentro

da imensa casa parecem apenas muito pequenas

e contra a estranha ruína que as cerca

a minúscula chama arde, no centro da luz dourada,

apaziguando o medo e tornando o sono

menos inseguro.