Habitando a casa, num outro quarto,
sobre o móvel alto de charão, com
suas figurinhas
orientais em relevo, feitas de
jade, marfim e madrepérola,
sobre esse móvel ergue-se a figura
de Maria,
Nossa Senhora da Conceição,
Padroeira de Portugal,
com seus cabelos dispersos sobre as
costas,
escultura que em tempos pertenceu à
bisavó M.
e de quem se diz que um dia terá
caído e que se terá partido,
mas que alguém recuperou e agora
já não é possível ver
com perfeita clareza exactamente
onde se partiu.
Esta Maria de rosto compassivo e
vestes brancas
e azuis, de pés escondidos pelo
manto que cai
e pela nuvem de onde emergem,
suaves,
três rostos infantis que são anjos,
diante dela
arde por vezes uma minúscula vela,
pois trata-se
de um procedimento antigo, talvez
um gesto
inexplicável contra o medo, porque
a luz
da pequena chama que arde é tão
tranquila
e tão suave que perto dela uma
espécie de companhia
parece que acontece, tornando o
sono menos inseguro.
Também as figurinhas orientais com
rostos de marfim
e vestes de jade e madrepérola,
dispostas ao longo das gavetas
como em pranchas de banda
desenhada,
também elas parece que contam uma
história,
pois há aí uma criança que cai no
chão, senhoras
que se abanam com um leque e um
homem que escreve,
debruçado sobre a mesa onde se
estende um texto chinês.
Por tudo isto é preciso falar
destas insólitas companhias,
porque na imensa casa semi
desabitada, casa isolada
no meio de campos e campos, casa
com mais de cem portas
e oitenta janelas e seus quartos abandonados
onde já ninguém entra, suas alas
arruinadas,
sem telhado, ou onde o chão
desabou,
nesta casa quando desce a noite a
imensa solidão
já não se pode ignorar e os poucos
quartos habitados
são como ilhas, barcos vulneráveis
que se iluminam,
ou frágeis balões que pairam no
abismo,
sobre a escuridão infinita, que
sobre nós desce,
porque as nossas salas são grandes
mas dentro
da imensa casa parecem apenas muito
pequenas
e contra a estranha ruína que as
cerca
a minúscula chama arde, no centro
da luz dourada,
apaziguando o medo e tornando o
sono
menos inseguro.