Estando um dia de manhã
a tomar o pequeno-almoço
à beira de uma janela entreaberta,
entrou por ela uma abelha a zumbir
e por ali ficou, esbarrando e
batendo contra o vidro,
atrapalhada. Estava eu a observá-la e a pensar
que não me apetecia
enxotá-la
com um pano, no esforço de lhe
indicar a saída,
pois lembrava-me das ocasiões
anteriores
em que o tinha feito e que estes insectos
parecem sempre voar ao contrário
da direcção em que os enxotamos.
Além disso preocupava-me
pensar que acertasse, por acaso,
nas asas frágeis e transparentes
e que assim diminuísse, sem querer,
uma arte de voar, e pensava
nisto,
enquanto observava a abelhinha
a palmilhar o vidro e a recuar,
quando encontrava o caixilho da
janela,
e era precisamente depois dele que
estava
a pequena fresta por onde podia
escapar.
«Curioso.» Pensava eu. «Um pequeno
ser vivo
tão habilidoso, que percorre o
grande céu
sem se desorientar, poisa nas suas
flores
por campos e campos, e regressa à
sua casa,
sem se perder, está aqui
encurralado,
na simples transparência de um
vidro.»
Ao mesmo tempo deixava-me
apreensiva
a ideia de que essa abelhinha
pudesse voar para dentro do boião
do doce
mas não me apetecia entrar nessa
luta
imprevisível de a enxotar, e dei
por mim a pensar,
distraidamente, e quase
inadvertidamente:
«É só uma criatura tua, Deus. Se tu
quiseres,
ela encontra a saída num ápice.»
E nesse preciso momento, no momento
exacto
em que se acabou dentro de mim este
pensamento,
a abelhinha abandonou aquele
movimento
obsessivo e insistente, contra o
vidro,
fez uma elipse perfeita e saiu pela
fresta,
com uma volta elegante.
«Caramba!...» Pensei eu.
«Não era preciso ser tão
rápido!...»
E dei por mim com uma sensação
estranha,
mas agradável, e muito leve,
pois de repente sentia como
se Deus,
de repente, brincasse comigo,
e me estivesse a dizer: «Estás a
ver,
criatura infantil, até que ponto
existo?»
E é claro que Deus não conversava
nem me dizia nada, mas eu sentia
nitidamente
que alguma coisa me estava a ser
dita,
e nem sequer me passou pela cabeça
que este ínfimo acontecimento
se tratasse de uma coincidência,
e se eu pudesse falar com Deus,
nesse preciso momento, dirigindo-me
a ele,
lançando-lhe um olhar pelo canto do
olho, dir-lhe-ia:
«Divertes-te, hem?...» Porque é
precisamente
isso o que sinto, mais do que
penso,
quando observo certos animais,
certas criaturas,
e certos aspectos particulares da
natureza,
deste mundo em que a nossa vida
acontece.
Uma zebra, por exemplo, ou os
peixes
às riscas coloridas que andam pelo
fundo do mar.
O excêntrico camaleão de olhos
espetados,
com a ponta da fina cauda
encaracolada, os cães,
quando levantam as orelhas, e
certos bichos
que têm corpos surpreendidos e
assarapantados.
A avestruz pestanuda e a altiva
girafa,
de olhos meio trôpegos e sedutores,
o urso polar, o panda, o coala e o
cangurú,
quem pode negar que há neles
qualquer coisa de cómico,
uma espécie de riso?...
Mas não só nos animais, mas nas
plantas,
nas flores, nos legumes, nos
fungos,
e até nas pedras, há uma espécie de
divertimento,
uma maneira peculiar de brincar.
Imagine-se uma alcachofra, um
ananás,
a flor do hibisco, ou certas
espécies de cogumelos,
com as suas bolinhas brancas,
contra um fundo vermelho.
E eu pensava, sem poder impedir-me:
«É verdade, Deus,
é bem verdade que às vezes ainda
sou essa criança
que não sabe como crescer, não sabe
como envelhecer,
não sabe às vezes como viver e
muito menos como morrer.
Ris-te de mim, não é?...
Ris-te com essa espécie particular
de carinho
porque sabes que me bato contra
limites
mas o que é certo é que uma parte
do que ainda tenho de aprender
será conseguir levar-me tão a sério
e precisamente nessa medida
em que a vida a si mesma se leva.»